Maria Amélia Mano
Nunca
consegui fazer o genograma da família. Maria, Marli e Lane. Tinha ainda o Chico
que, depois de ficar “todo torto” por uma bala perdida, acabou assassinado.
Quatro irmãos vindos do interior. Três mulheres que viviam de seus corpos. As
três soropositivas. Marli, a do meio, era a mais centrada, tomava conta de
todas. Era o equilíbrio. Não conheci e quando falam dela na unidade, é sempre
com carinho.
Contam
que, uma tarde, estavam fazendo grupo em uma casa na comunidade e Lane chegou aos
prantos, um grito vindo do fundo da alma. Marli havia morrido de infarto. Tinha
35 anos, exames do HIV estáveis, usando direitinho os remédios. Deixava três
filhos pequenos que somados aos pequenos de Lane, formavam uma tropinha de
crianças danadas, carinhosas e bonitas.
Joana,
a mais velha da Marli, soropositiva por transmissão vertical, estava sempre na
unidade. Internava com frequência. Teve tuberculose, toda sorte de furúnculos e
infecções respiratórias e toxoplasmose cerebral. Quase morreu muitas vezes. Uma
vez, perto do natal, me pediu para ser internada porque o natal no hospital era
bonito: “tem festa”. Teve festa de 15 anos dada por vereador que prometeu
mundos e fundos. Não cumpriu.
Maria
vivia em seu mundo, separada. Lane ficava com as crianças. Com o crack,
colocava pessoas estranhas em casa, gente do tráfico. Expunha as meninas. Quando
internou por tuberculose, os menores foram abrigados. Joana fugiu. Um dos
pequenos também fugiu e se sabia, vivia de pequenos furtos no sinal. Lane se
apaixonou na clínica e, quando saiu, mudou para outra vila, levando os menores.
Diana
é a mais velha de Lane. Tem 22 anos e quatro filhos. O primeiro, teve quando
tinha 14 anos. Filho de Carlos que morreu assassinado. Ainda se envolveu com um
traficante e tinha dificuldade de acessar a unidade de saúde porque era
ameaçada. Viveu no abrigo. Nunca se soube do pai de Diana ou dos outros filhos
de Lane. Na verdade, nunca se soube dos pais de nenhum dos filhos das três
irmãs.
Ontem
atendi Diana. Sempre pergunto de todas. A tia Maria está na “dela”, como
sempre. Joana está vivendo com um rapaz em outra vila, anda sumida, acha que
não está se cuidando e quer ser mãe. Os pequenos de Lane, sei pouco depois que
saíram. Os pequenos de Marli já são adolescentes. Menino continua furtando.
Menina parece que está se envolvendo com prostituição.
Lane
está voltando para a vila. Vai fazer cirurgia. Câncer de colo de útero.
Diana me conta tudo enquanto dá de mamar. Luísa é uma menininha cabeluda de 40
dias que fiz o pré natal, assim como fiz o pré-natal do penúltimo também. Assim
como atendo os filhos de Diana. Diana quer fazer ligadura tubária. Cuidou dos
irmãos, dos primos, cuida dos quatro filhos e só tem 22 anos e está sem
trabalho. Sorri sempre.
Luísa
ficou 30 dias internada por infecção hospitalar. Leio a nota de alta. Diana nem
sabe o quanto foi grave. Luísa é sobrevivente, como Diana e seus filhos, seus
irmãos, seus primos, sua mãe e tias. Família que nunca consegui fazer o
genograma. Escolhas e falta de escolhas. Neste fim de março, mês da mulher. O
que mais desejo para Luísa, para nós, para as que virão, é o poder escolher.
E
seguro, abraço e saio com Luísa, delicada, esfomeada, cheia de picadinhas de
mosquito, pequenina e cabeluda, imaginando que ela possa se libertar, que possa
resgatar, que possa fazer escolhas.. Desfilo com Luísa pela unidade como
desfilo com todos os bebês que vejo crescerem na barriga, que vejo caminharem e
sorrirem. Mostro Luísa, orgulhosa: “Olha que linda! Mais uma menininha!”
Ilustração: Márcia Marostega
Ilustração: Márcia Marostega
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