19 abril 2016

PONTO DE FUGA


Maria Amélia Mano

                Em Pelotas, tem um camelódromo em frente da receita federal. Na Conferência Nacional de Saúde, em Brasília, a cozinha do local foi interditada por falta de condições. Em Porto Alegre, tem uma igreja pentecostal do lado de uma boate de “má fama”. No cinema, um filme conta a história de pedofilia e abuso entre padres.

                Evento sobre Educação Popular no Conselho Estadual de Saúde marcado para as 8:00, começa às 10:00, faz calor.

                Sento atrás de mesa pequena. Estou confortável. Ligam o ar. Chega a organizadora.

                - Então, gente, vamos fazer uma roda! Venham para frente!

                Saio de trás da mesinha e me coloco na frente, mas puxo uma parte da mesa para perto, para me servir de apoio.

                A organizadora me chama atenção.

                - Ah! Venha para perto! Assim, atrás da mesa, fica isolada!

                Explico:

                - Está bem assim! Gosto de anotar e tenho dificuldade com a mesa muito atrás...

                Ela parece não gostar, mas se conforma.

                Antes de iniciar, chega alguém muito importante para dar as boas-vindas aos participantes. Logo me vê com a mesa na frente.

                - Vamos! Entre para a roda!

                Explico, novamente:

                - Está bem assim! Preciso da mesa perto para anotar.

                A mulher importante, que é conselheira de saúde, continua:

                - Ah, você precisa de um apoio!

                Não entendi se esse apoio era físico ou simbólico. As pessoas costumam subjetivar ou interpretar coisas simples. Resolvo explicar mais:
                - Sim, preciso! Tive um problema no ombro e é mais confortável pra mim ficar assim!

                A mulher importante parece convencida e termina o assunto:

                - Ah, sim, você tem limitações!

                Não respondo. Nunca pensei por esse lado. Limitações, talvez...

                Nunca foi tão difícil colocar uma mesa para escrever...

                A reunião continua. A coordenadora, aquela, a primeira, propõe uma roda de apresentações, de pé e de mãos dadas. Algo como uma dinâmica que cada um diz o nome e o grupo todo repete o nome da pessoa, saúda e dá um passo para a direita e segue a roda.

                A primeira menina diz o nome e solta as mãos do grupo. A coordenadora adverte que ela não pode soltar as mãos e que repita a apresentação. A menina repete e equivocadamente, também repete o ato de soltar as mãos. A coordenadora adverte novamente. Intervenho:

                - Gente, ela quer se soltar...

                Minha fala pareceu algo esotérica, simbólica, como um voo de libertação (e talvez fosse). Era mais simples. Mas as pessoas gostaram. Mesmo assim, a menina repetiu pela terceira vez, dessa vez, sem soltar as mãos.

                A roda seguia. Muita gente. Proponho, de bom humor, apesar dos percalços, que a gente inverta a roda, que possa ir para a esquerda, que possa dar uma volta, um rodopio, quem sabe ir para dentro ou para fora...

                Imaginava que, tal qual a soltura das mãos, esse seria um ato simbólico de reinvenção, talvez, de desobediência a uma regra que não vemos muito sentido, nem que seja por uma simples dinâmica de apresentação.

                A coordenadora disse que somente deveria ir para a direita. Se não me engano, citou algo das danças circulares sagradas, alguma questão que colocava a obrigatoriedade da roda girar somente para a direita. Acatei.

                Depois, leitura de documentos e algumas colocações, lanche gostoso, pessoas circulando, boas trocas, mas pouco tempo restando para o diálogo. Tinha que trabalhar à tarde. Me despedi de todos.

                Até onde acompanhei, ninguém questionou a fala da coordenadora. Falaram de Freire, empoderamento, problematização, humanização.

                Eu, me descobrindo pela primeira vez com alguma limitação, só queria ficar atrás de uma mesinha anotando as coisinhas que gosto de marcar e lembrar....

                Eu, bem humorada, querendo mudar a direção da roda, de brincadeira, só para experimentar um jeito novo. Mas que sei eu de regras de círculos, danças, rodas sagradas...

                Pra mim, sagrado, é exatamente poder, quando quero, largar da mão, inverter a lógica, inventar, dançar na roda e discursar menos, cada vez menos. Sagrado é roda que se desfaz e refaz. Sagrado é escuta e respeito.

                O sagrado, pra mim, é pensar que não só posso largar tudo, mas abraçar tudo, de novo. Sair correndo ou sair voando. Sagrado é intuição e criação, mais que regra. Mas o mundo está cheio de rodas sagradas coordenadas. Como se o sagrado tivesse mão e contramão.

                Tem criadouro de Aedes nos arredores do prédio do Ministério da Saúde. Em Caruaru, logo em seguida do cemitério, tem a placa de uma grife: ponto de fuga. Em meio a coincidências, contradições, incoerências, nas ruas, nos movimentos, nos discursos, o mais legal mesmo é conservar os sagrados pontos de fugas, em todas as rodas sem significado. 

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