Te vejo flores em você. Ernande, 2015. |
Ernande
Valentin do Prado
Mais um dia com fome,
pensou seu Sebastião olhando suas três crianças magras no único quarto da casa.
Ele havia terminado de contar uma história sobre a cobra faladeira, que deixou
as crianças alertas, apesar de já tarde. A mulher, com os olhos fundos, muito
verdes, estava em silencio, resignada no colchão surrado.
- Meninos, vocês estão
com fome? Disse seu Sebastião, levantando-se de forma ligeira e inesperada.
As crianças não
responderam, continuaram caladas, olhando-se entre si e para o silêncio da mãe
no canto.
- Vi um pé de laranja
carregadinho, bem perto daqui.
Os meninos ficaram
animados e não era apenas pela chance de amenizar a fome que corroía seus
estômagos, mas pela aventura de procurar laranjas com o pai no meio da noite.
Geralmente não conviviam muito com ele, que trabalhava cuidando de gado a
semana toda em uma fazenda não muito perto da cidade, enquanto elas ficavam com
a mãe na cidade, porque precisavam estudar.
- Sem estudar vão
repetir nossa sina, dizia a mulher.
Ele vinha no sábado,
depois do almoço, geralmente com o pagamento da semana e comprava os mantimentos,
mas esta semana seu patrão, Dr. Varela,
foi com a família para praia comer pitu e se esqueceu de deixar o dinheiro.
Criança é um bicho bobo
demais, pensou seu Sebastião ao ver a alegria das crianças.
- Vou sair com as
crianças por aí, disse seu Sebastião para a esposa deitada, sem ânimo para
reagir. Apenas soprou muito baixo dos lábios:
- Tá!
E ao ver o marido e as
crianças se arrumando disse, reunindo as poucas forças que parecia ter:
- Até quando a gente
vai vive assim?
O marido não respondeu,
mas sentiu no fundo de sua alma uma pontada de dor, vergonha por não conseguir
manter a casa como deveria. Eta sofrimento do cão, pensou sozinho sem saber o
que fazer, onde enfiar a cara.
Joana D’ac morava ao lado
do salão paroquial, onde tem um enorme pé de laranja. Os galhos se estendendo por
cima do muro. E as laranjas já estão bem grandes, apesar de ainda verdes, pesando
e puxando os galhos mais finos para baixo.
Joana é Enfermeira recém-contratada
para trabalhar na Unidade de Saúde do bairro aonde mora seu Sebastião, a esposa
e as suas crianças. Tem só uma semana que está na cidade. Por volta das 23
horas ela ouviu barulhos, abriu a janela para ver melhor. Na rua escura um
homem em pé na calçada orientava duas crianças a pegar laranjas verdes que
pendiam para fora do quintal do salão paroquial. Já havia, junto aos seus pés,
um monte bem grande das frutas, outra criança menor sentada brincando com elas,
e as outras duas, sob o murro, continuava colhendo novas frutas.
Que absurdo! Pensou a
moça: crianças a essa hora da noite roubando laranjas no terreno da Igreja. Ela
ficou incomodada, pegou o telefone:
- Qual é mesmo o número
da polícia? Falou consigo mesma, talvez tentando encontrar um motivo para
deixar isso pra lá.
Voltou a janela, onde
as crianças continuavam animadas fazendo algazarra enquanto o homem silencioso
orientava a coleta das laranjas.
- Que tipo de pai
permite crianças acordadas até essa hora, e pior, em pé num muro desta altura?
Joana estava indignada
com esse absurdo: estão roubando laranjas, e verdes, ainda por cima. Absurdo,
absurdo, absurdo. Em que mundo vivemos, meu Deus do céu, pensou ela ainda com o
telefone na não, mas não digitou no número da PM.
A enfermeira voltou
para cama, tentou dormir, mas perdeu o sono pensando na imagem das crianças
subindo felizes no muro e de lá jogando laranjas para o pai.
No dia seguinte, logo
pela manhã, Joana foi à missa e passou em frente à casa de seu Sebastião: uma pequena
construção de poucos metros quadrados, menos de dois metros de altura. Lá
estava seu Sebastião descascando laranjas e em sua volta as crianças e a
esposa. Joana sentiu um aperto no coração, sem entender bem porque, mas sabia
que não era coisa boa. Pensou de novo: em que mundo vivemos meu Deus?
Rezou incomodada, passou
todo domingo incomodada e foi trabalhar incomodada e pensando nas palavras de
um antigo professor da faculdade de enfermagem: “não ensino enfermeiras para
verificar pressão e fazer curativos, ensino enfermeiras para mudar o mundo.”
Joana sabia no fundo de
seu coração que precisava e podia fazer alguma coisa. Mas o que, o que poderia
fazer. Como é que a enfermeira pode mudar o mundo?
Chegando no trabalho,
na segunda-feira, Joana chamou os Agentes Comunitários de Saúde e perguntou:
- Quem trabalha na área
perto da igreja católica?
- É a Raquel,
responderam.
- E cadê ela, perguntou
Joana, olhando em sua volta.
- Ainda não chegou.
- Então tá meia hora
atrasada. Quando chegar pede para vir falar comigo.
Ao chegar, Raquel foi
até a sala de Joana. A enfermeira pediu a ficha com as informações sobre seu
Sebastião e sua família. Raquel foi buscar e na volta passou a relatar:
- Casa de alvenaria de
dois cômodos, três filhos, não tem diabetes, nem hipertensão e a mulher não tá
grávida. Não usam nenhuma medicação.
- E o que mais?
- Mais nada. Precisa
mais?
- Qual a idade deles,
de onde vieram, qual o peso das crianças, que vacinas tomaram, onde seu
Sebastião trabalha, quanto ganha, sabe ler e escrever, onde as crianças
estudam, têm parentes na cidade, a mulher fez pré-natal aqui, teve algum
problema, eles recebem bolsa família ou algum outro auxilio social?
- Não sei de nada
disso.
- Quanto tempo faz que
trabalha de ACS?
- Cinco anos.
- E não conhece o
pessoal da sua área?
- Conheço, sei tudo que
tem na ficha.
- Não acha muito pouco
o que tem na ficha?
- Mas a outra
enfermeira nunca pediu isso.
- Mas agora precisa.
Vamos fazer o seguinte. Vá na casa deles agora e descubra tudo. Vou ficar
esperando.
- Só isso?
- Não. Por que chegou
atrasada hoje, aconteceu alguma coisa?
- Mas foi só meia hora.
- Se você tivesse todas
as respostas para minhas perguntas eu não ia falar nada, mas você não soube
responder as perguntas que fiz.
- Nossa, já vai começar
pegando no meu pé?
- Você sabia que aquela
família só tem laranja verde para comer?
- Você nem vai ficar
trabalhando muito tempo aqui, todo mundo vai embora.
- Talvez não, mas
enquanto estiver vou tentar mudar o mundo! E você vai me ajudar.
Joana ficou um tempo em
silêncio, olhando Raquel em pé em sua frente, indecisa entre dizer mais alguma
coisa ou sair batendo a porte.
- Mas por que?
- Vou ficar esperando
você voltar com essas informações antes do almoço. É muito urgente.
Joana ficou só em sua
sala, ainda incomodada por não saber como mudar o mundo, mas esperançosa,
sabendo que acabaria descobrindo.
- Posso entrar, falou
Marinalva, atrás de sua barriga de oito meses.
Joana sorriu, olhou a
mulher nos olhos e pensou: vou começar fazendo a melhor consulta de pré-natal
que se pode fazer.
[Ernande
Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O que tem a dizer sobre essa postagem?