17 maio 2016

DINDA [Maria Amelia Mano]


Maria Amélia Mano


Para minha manas mães


            Essas palavrinhas parecidas que procuramos no dicionário e não tem nada a ver com o que sentimos delas, lembramos delas. Trazem mais cor e sabor do que significado real. Estribilho era o que tinha nas folhas dos cânticos da igreja. Me lembra da gente cantando alto e se mostrando para os meninos da primeira fila. Me lembra o som oco que vinha do altar e a Irmã Ivanira olhando com raiva...

            Pergaminhos, era o desenho que a mãe fazia nas capas dos meus trabalhos de escola. Ela fazia caprichado com canetinha e eu coloria com lápis de cor da mesma cor, sombreando as saliências e reentrâncias, os rasgos e dobras desenhadas do que seria um papel antigo, mágico, um segredo dentro de uma garrafa jogada ao mar, com alguma receita secreta: “Trabalho de Português”.
           
            Pra ficar mais bonito, o trabalho tinha as folhas geralmente de papel almaço presas com linhas de bordar. Aquelas linhas mais grossas e com cores mais claras e mais escuras, meio degradê... Degradê também é palavra bonita. Almaço é linda! Lembra dia de prova, necessidade de fazer margem nas laterais. Melhor que isso só mimeógrafo e quase sinto o cheiro da tinta azul...

            Carretilha parecia um monociclo de palhaço. Muita imaginação, claro! A mãe usava para marcar os tecidos. E a bobina de metal da máquina de costura... Nossa! Bobina era demais! Me lembrava um capacete de astronauta em miniatura. Tinha um dispositivo, tipo pequena alavanca de ajudar a tirar a linha do carretel pequeno. Esse carretel pequeno era o filho da linha grande.

            Alicate vai ser sempre coisa do pai. Traque vai ser sempre São João. Piaçava vai ser sempre quintal cheio de folhas secas. E saco de pano de coar vai ser sempre fim de tarde e pão com manteiga. Bilhete será sempre coisa de namorados. Carta, sempre sinônimo de saudade. Calçada sempre será correria e quintal, uma aventura. Piscina de plástico é mar bravio e boia de isopor, uma ilha perdida.

            Angústia é palavra de gente grande. Dois “as” nas pontas. Semivogais no meio. Para dar a noção de aperto. Nenhuma palavra é mais perfeita do que angústia. Angústia é espera e náusea ao mesmo tempo. É tristeza. É vontade que termine logo. É nó no meio do peito, falta de ar, de sono e de atenção. É tensão. É uma corda prestes a romper. É a gente prestes a cair.

            Mas pra diminuir aperto, adultice, resgatar criancice, leveza, tem palavra que se aprende nova e é pura caixa de surpresas, baú de guardados. Tia é olhinho redondo, assustado de mundo, envolto em pano branco. Tia é “cheguei”. Tia é susto de cacunda e caldinho na água. É excesso de calda de chocolate e excesso de barulho. Tia é boca suja de sopa e casa de caixa de papelão na sala.
           
            Melhor que tia, só dinda. Palavra que conheci mais velha porque não tinha o hábito dela. E veio como presente grande, cabelo encaracolado e risada grande, daquelas que joga a cabeça para trás e fecha os olhos grandes cor de mel. Também é abraço suado com cheiro de cachorro, caretinha e mão suja de terra e de acerola tirada do pé. Risada exagerada, de novo, coincidência... Risada...

            Então, resolvido, dinda é risada grande e gostosa. Tia é um bando de crianças correndo na sua direção, ao mesmo tempo. Sorte minha que esperei pela barriga redondinha das irmãs e pelos presentes do coração. Sorte por essas menininhas, esses meninos mágicos, essas palavrinhas velhas que nascem novas, pulando, sem que eu tenha gestado e parido, criado...   

            Obrigada, Aninha e Raquel, por serem mães e terem me tornado tia e dinda. Por darem sentimento, sabor e cor a essas palavras. Por me deixarem saborear de outras tantas palavras reinventadas, corridas, dormidas, sonhadas, lambuzadas de rapa de bolo na tigela, massa crua disputada por muitos dedos, como um dia, disputamos nós, pequenas, grandes amigas, irmãs.
             

             

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