Maré. Ernande, 2014. |
Ernande
Valentin do Prado
Silvia tem 22
anos. Hoje seu cabelo está bem curtinho, na altura da nuca. Mas até ontem era
um longo cabelo preto, muito escuro. Luxuriantes até.
Uma noite, na
praia, o noivo com quem rompeu há oito meses o relacionamento de quatro anos, a
fotografou à luz do luar coberta apenas com seus longos e luxuriantes cabelos.
- Nunca corte
esses cabelos que eu amo, dizia sempre.
Com ódio, e
sem entender o fim do noivado, Rômulo, o noivo de 23 anos, jogou essas fotos na
internet. Mas essa é outra história.
Silvia mora em
um apartamento há oito quadras do seu local de trabalho. Divide as despesas com
Luiza, de 32 anos, professora da rede municipal de ensino. Dá aulas de química.
Moram juntas há exatamente oito meses, desde que rompeu com o noivo.
Foi um
rompimento que surpreendeu a todos, amigos, colegas de trabalho, família.
Ninguém ainda entendeu bem. O casamento estava marcado para o fim daquele ano,
quando Rômulo concluiria o curso de Educação Física. Já estava pagando um
apartamento do tipo minha casa minha vida, no Mangabeira. Tinham plano de ter
dois filhos, assim que Silvia também concluísse seu curso de Administração de Empresas.
Ontem ela
chegou em casa mais cedo. O Quiosque em que trabalha como caixa na Praia de
Tambaú fechou para dedetização, após uma inspeção surpresa da vigilância
sanitária.
-
Filhos-da-puta, disse o patrão em uma reunião com os funcionários, quando
anunciou que o restaurante ficaria fechados por uns dias. Eu já tinha
pagado a parte deles, mas tem um fiscal novo querendo ser honesto. Ratos...
- Essa hora
Luiza está em casa, pensou Silvia. Vou lhe fazer uma surpresa.
Foi para casa
depois de passar no cabeleireiro e cortar o cabelo na altura da nunca.
- Luiza vai
amar meu cabelo novo, pensou Silvia. Ela dizia sempre: por que não corta esse
cabelo, dá muito trabalho para cuidar, mulher!
Ao chegar em
casa notou que tinha alguém com Luíza no quarto. Não fez barulho, não deixou
que a percebessem. Viu na sala o boné de Rômulo. Tinha certeza que era ele quem
estava com Luíza, até a mancha na aba era a mesma. Tinha certeza da
traição. Voltou para rua, andou pela
cidade sem ter para onde ir, esperando a hora habitual de voltar para casa. Não
tinha com quem conversar, não podia ir para casa dos pais, não podia procurar
um amigo, todos iriam lhe dizer: eu bem que avisei.
Ontem quase
não dormiu. Quando chegou em casa, quase nada falou com Luiza e procurou não
ficar no mesmo ambiente que ela.
- Estou com
muita dor de cabeça, acho que pode ser dengue ou até Zika, disse ela como
desculpa por seu estado de espírito.
Se Sílvia não
tivesse disposta a evitar até o contato visual, teria percebido que o estado de
ânimo de Luíza não era diferente do seu. Até manchas vermelhas tinha nos braços
e no rosto.
Passou a noite
calada, olhos arregalados. Deitava-se, levantava-se, andava pela casa, ligava a
tv, desligava, tomava agua, fazia xixi. Até que o dia amanheceu e saiu para
rua, mesmo antes do horário habitual do trabalho.
Agora tá
sentada olhando o mar, faz mais de meia hora. As ondas vão e veem agitadas, sem
parar, fazendo aquele som que ela adora ouvir. A maré tá enchendo, daqui meia
hora vai estar no ponto máximo.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
Revisão: Jailson Almeida.
Revisão: Jailson Almeida.
COLEÇÃO: ALÉM DA ARREBENTAÇÃO
JÁ PUBLICADO
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