Maria Amélia Mano
Dizem que ela bate de vez em quando.
Mas acho que ela não bate não. É mais mal educada. Ela invade. Não pede
licença. Chega. Essa Senhora. Pronta para nos dizer de saudades, de coisas não
feitas, mal feitas, desfeitas. Coisas sem jeito de ajeitar. Chega pronta para
não nos perdoar de nós. E chovem culpas, goteiras de arrependimentos, chão
encharcado de presente e passado. Que futuro é medo e incerteza. Balde de solidão
profunda.
Eu que vejo noite na lágrima, me
faço cafuné de mania. Todos os dedos entrando nos cabelos. Massageando couro
cabeludo. Descabelando. Fazendo dez caminhos, descaminhos, desencaminhos. Como
dez crianças que correm no trigal, abrindo vazios. Como dez aviões da
esquadrilha da fumaça no céu, cruzando o branco, fazendo rumo no azul sem fim. Como
marca na água de dez barcos que navegam contra a correnteza.
A Senhora seduz e é fácil cair na
conversa de pranto e travesseiro. Mas ela somos nós e enquanto parte de nós, é
preciso entender, conversar, convencer, negociar. Que nem sempre é tempo de ser
feliz. Mas nem sempre é tempo de fazer durar o desalento. E se nosso limite é o
tempo, também ele é o nosso pior juiz. Ele que dita
sentença e cárcere. Ele que afirma liberdade e nos permite sair de nós ou nos
trancar em nós.
Bonita como um dia que chega ao fim,
a Senhora faz visita longa, às vezes e, por outras, dá só uma passadinha,
deixando perfume de manhã de chuva, anunciando dia escuro. Alimentamos ela com
chá quente e animamos com chocolate em barra grossa. Cantamos com álcool e
algumas palavras tolas. No fim, ela nos abraça e vai embora, afetuosamente,
ternamente, marcando nossa pele com alguns vincos arados de semear novas
flores.
Sim, ficamos mais férteis depois dela.
Sabemos que ela voltará, um dia. Quando perdermos alguém, quando houver
decepção, quando um sonho morrer, quando o que desejamos nos fugir das mãos, às
vezes, para muito longe, às vezes, para nunca mais voltar. Faz parte do ritual
de acasalamento, para nos gerar de nós, para nos parir de nós, nos fazer
crescer, sempre, de nós, mais verdadeiros e humanos.
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