21 junho 2016

DESDE QUE O SAMBA É SAMBA É ASSIM


Maria Amélia Mano

            Dizem que ela bate de vez em quando. Mas acho que ela não bate não. É mais mal educada. Ela invade. Não pede licença. Chega. Essa Senhora. Pronta para nos dizer de saudades, de coisas não feitas, mal feitas, desfeitas. Coisas sem jeito de ajeitar. Chega pronta para não nos perdoar de nós. E chovem culpas, goteiras de arrependimentos, chão encharcado de presente e passado. Que futuro é medo e incerteza. Balde de solidão profunda.

            Eu que vejo noite na lágrima, me faço cafuné de mania. Todos os dedos entrando nos cabelos. Massageando couro cabeludo. Descabelando. Fazendo dez caminhos, descaminhos, desencaminhos. Como dez crianças que correm no trigal, abrindo vazios. Como dez aviões da esquadrilha da fumaça no céu, cruzando o branco, fazendo rumo no azul sem fim. Como marca na água de dez barcos que navegam contra a correnteza.

            A Senhora seduz e é fácil cair na conversa de pranto e travesseiro. Mas ela somos nós e enquanto parte de nós, é preciso entender, conversar, convencer, negociar. Que nem sempre é tempo de ser feliz. Mas nem sempre é tempo de fazer durar o desalento. E se nosso limite é o tempo, também ele é o nosso pior juiz. Ele que dita sentença e cárcere. Ele que afirma liberdade e nos permite sair de nós ou nos trancar em nós.

            Bonita como um dia que chega ao fim, a Senhora faz visita longa, às vezes e, por outras, dá só uma passadinha, deixando perfume de manhã de chuva, anunciando dia escuro. Alimentamos ela com chá quente e animamos com chocolate em barra grossa. Cantamos com álcool e algumas palavras tolas. No fim, ela nos abraça e vai embora, afetuosamente, ternamente, marcando nossa pele com alguns vincos arados de semear novas flores.

            Sim, ficamos mais férteis depois dela. Sabemos que ela voltará, um dia. Quando perdermos alguém, quando houver decepção, quando um sonho morrer, quando o que desejamos nos fugir das mãos, às vezes, para muito longe, às vezes, para nunca mais voltar. Faz parte do ritual de acasalamento, para nos gerar de nós, para nos parir de nós, nos fazer crescer, sempre, de nós, mais verdadeiros e humanos.

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