Maria Amélia Mano
E nos reencontramos em uma tarde de julho. Olhos meus
de brilho de entardecer. Olhos dela de imensidão e vazio para o nada. Ela fala,
estudando as palavras como o vento estuda a terra, cuidando os gestos, com
vincos na face, arados na alma, marcas de uma vida de ausências e esperas.
Lembramos, juntas. A presença
iluminada entre cachos e risos, ternura profunda, alegria da vida, milagre,
vitória, escorregou das mãos, deslizou do colo e subiu ao céu, em sorriso, em declaração
de amor e silêncio de oração desesperada. Fuga sem razão. Sóis e luas
breves.
Ela chorou e culpou o mundo, a mim,
ao tempo e enfrentou Deus, em revolta e dor. Ela queria dormir para sempre,
estar junto. Lembrou das muitas mortes que a pequena quase teve, anjo frágil,
em corda bamba de esperança e alegria, a dançar e a correr descalça pela rua.
Canção de ninar.
E, quando esse tempo, asa que bate em
voo lento, distante, em céu de mistérios, passa, ela olha para a alma ferida.
Olha com amor e compreensão, a generosidade que só as mães e mulheres podem
carregar no coração. E nos reencontramos em uma tarde de julho, de vida.
E cada palavra nos vem como uma
grande cachoeira a nos banhar, imensa força das águas que nos liberta, que nos
resgata em um abraço que treme nossos corpos tal qual pássaro ferido na palma
da mão quente. Fomos tão únicas naquele abraço que quase fui mãe e ela quase
foi médica.
A filha que foi minha desde o útero, a
primeira dor de parto, o primeiro colo. A paciente que foi dela desde o
primeiro batimento escutado do ventre, a primeira febre e o primeiro
alívio. E aprendemos a compartilhar dor e amor, seios vazios de diferentes
alimentos de alma. Desmame que termina em segundos.
Do céu, de longe, de perto, em uma
tarde de julho, quando nos reencontramos, há um toque leve de mão pequena. Sentimos
que o dia, a vida, abriu sua janela de mágica bondade e esperança. É nossa
menina que nos acaricia e que me faz pequena, criança, na imensidão do colo da
mulher que chora com a dignidade de um agradecer.
Ilustração: Sandra Bierman
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