Maria Amélia Mano
Para Ana Lúcia
Vento soprando
Poemas
Histórias que eu vivi
Histórias que eu nem vi
Pedaços do que eu sou
Poemas
Histórias que eu vivi
Histórias que eu nem vi
Pedaços do que eu sou
Gabriel Setubal/Diego Casas
Tem uma hora
em que a inspiração encontra o vazio e bate na porta e escuta o eco da própria
batida. Ninguém em casa. Lista de compras, lista do que fazer, e-mails para
enviar, o horário da reunião, o relatório que precisa fazer, os documentos que
precisa mandar, as roupas molhadas na corda, a caixa de correspondência, contas
para pagar, o número da faxineira, segunda-feira, dois ônibus, a receita azul,
o cartão ponto...
Como eu tiro de dentro essa
força
Que me faz seguir
Faz acreditar
Quer eu só acordo quando eu abro o meu olho
Se eu não acordo
Eu me sustento em mim
Eu me sustento em mim
Que me faz seguir
Faz acreditar
Quer eu só acordo quando eu abro o meu olho
Se eu não acordo
Eu me sustento em mim
Eu me sustento em mim
Alguém coloca as palmas das mãos, por
trás, sobre os dois olhos de quem está adiante: “adivinha quem é?”
Escurece. Deixo o que fazia,
impedida de ver. Tento adivinhar. Pela textura da pele, pelo calor, o aroma, a
espessura dos dedos, os anéis, a respiração de pertinho. Chuto nomes. Erro...
Então, mantenho os olhos fechados,
em curiosidade boa, em escuridão de quase sono, esquecida do mundo já apagado,
pausa, não mais a angústia de tentar saber, mas de curtir o carinho
desconhecido, esse, essa, que tem a ilusão de ser nomeada para se sentir lembrada,
para se sentir amada.
As fendas entre os dedos deixam
entrar um pouco da luz de fora, do mundo. Não tenho pressa de saber. Mas ela
ainda insiste em perguntar. E demoro a dizer, com cuidado. Erros de nomes
magoam. Deixo falar mais para conhecer a voz que sinto, aos poucos,
entristecer, pelo meu esquecimento. A voz muda. O suor molha minhas pálpebras. Durmo.
Vou rodar
Me atirar ao mar
Esfregar as mãos
E desvendar um outro enredo, um outro drama
Na mesma cama
Aonde está você?
Aonde está você?
Me atirar ao mar
Esfregar as mãos
E desvendar um outro enredo, um outro drama
Na mesma cama
Aonde está você?
Aonde está você?
E, como em um passe de mágica, a luz
vem. Na verdade, ela sempre esteve presente, eu que cerrei os olhos em sonho bom
de reencontro de amiga de mão cheirosa e voz alegre no meio da viagem: “adivinha
quem é?”
Adormeci na travessia longa de sonho
curto. Desperta, observo em volta. Vejo a passageira do lado a me olhar
irritada. É, fui inconveniente: deitei a cabeça no ombro dela, a
desconhecida... Mas foi sem querer, tento me desculpar sem palavras, mas a
menina sai mais rápida que meu olhar.
Todos descem na plataforma. Agora, a
vida ganha lucidez e velocidade. Imensas bancas de frutas ao lado da plataforma
seduzem com o colorido. Muitas cidades podem ter esses monstros de metal
vociferando e buzinando nas pistas, carregados de gentes sonolentas e sem muita
inspiração. Mas só minha cidade pode ter, ao lado do berço dos monstros, as
últimas frutas da estação.
Arrisco uma conversa. Bonita placa, escrita
poética de laranja do céu, bem doce. O dono da banca, cheio de sotaque, diz que
a pera, então, está mais doce ainda. Pega uma e parte um pedaço pra mim. Doce
mesmo! Diz que fica ali 24 horas. Imagina, 24 horas de fruteira aberta! Prometo
voltar. Sorrisos.
Como eu posso estar
Perceber, criar
E me encontrar em outro caos, em outro corpo
Onde eu não sofro
Onde eu não sou ninguém
Onde eu não sou ninguém
Qual é o fundo do mundo da gente?
Tem uma hora
em que o vazio encontra a inspiração no simples cotidiano de um cochilo em
viagem de volta pra casa, no ombro de uma desconhecida, imaginando o carinho
amigo, a adivinhação infantil: “adivinha quem é?”
É o soninho
no ônibus, o ombro macio e as desculpas que não pedi, o sabor da pera, a
caminhada na noite fria, passar pelo mercado fechando, adormecendo, vindo o próximo ônibus. É a
lua linda imensa no céu, saborosa como o pedaço de pera partida, como a laranja de lua cheia, cheia de graça, que nem essa segunda-feira, esse dia que passou, a fruteira 24 horas aberta para dar sabor pra quem passa pela vida, em poesia, em sorriso, doce, bem
doce.
Poemas/palavras/música: Sonhos Lúcidos - Gabriel
Setubal/Diego Casas
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