19 julho 2016

SONHOS LÚCIDOS


Maria Amélia Mano

Para Ana Lúcia

Vento soprando
Poemas
Histórias que eu vivi
Histórias que eu nem vi
Pedaços do que eu sou
Gabriel Setubal/Diego Casas

            Tem uma hora em que a inspiração encontra o vazio e bate na porta e escuta o eco da própria batida. Ninguém em casa. Lista de compras, lista do que fazer, e-mails para enviar, o horário da reunião, o relatório que precisa fazer, os documentos que precisa mandar, as roupas molhadas na corda, a caixa de correspondência, contas para pagar, o número da faxineira, segunda-feira, dois ônibus, a receita azul, o cartão ponto...

Como eu tiro de dentro essa força
Que me faz seguir
Faz acreditar
Quer eu só acordo quando eu abro o meu olho
Se eu não acordo
Eu me sustento em mim
Eu me sustento em mim
            Alguém coloca as palmas das mãos, por trás, sobre os dois olhos de quem está adiante: “adivinha quem é?”

            Escurece. Deixo o que fazia, impedida de ver. Tento adivinhar. Pela textura da pele, pelo calor, o aroma, a espessura dos dedos, os anéis, a respiração de pertinho. Chuto nomes. Erro...

            Então, mantenho os olhos fechados, em curiosidade boa, em escuridão de quase sono, esquecida do mundo já apagado, pausa, não mais a angústia de tentar saber, mas de curtir o carinho desconhecido, esse, essa, que tem a ilusão de ser nomeada para se sentir lembrada, para se sentir amada.
            As fendas entre os dedos deixam entrar um pouco da luz de fora, do mundo. Não tenho pressa de saber. Mas ela ainda insiste em perguntar. E demoro a dizer, com cuidado. Erros de nomes magoam. Deixo falar mais para conhecer a voz que sinto, aos poucos, entristecer, pelo meu esquecimento. A voz muda. O suor molha minhas pálpebras. Durmo.
Vou rodar
Me atirar ao mar
Esfregar as mãos
E desvendar um outro enredo, um outro drama
Na mesma cama
Aonde está você?
Aonde está você?
            E, como em um passe de mágica, a luz vem. Na verdade, ela sempre esteve presente, eu que cerrei os olhos em sonho bom de reencontro de amiga de mão cheirosa e voz alegre no meio da viagem: “adivinha quem é?”
            Adormeci na travessia longa de sonho curto. Desperta, observo em volta. Vejo a passageira do lado a me olhar irritada. É, fui inconveniente: deitei a cabeça no ombro dela, a desconhecida... Mas foi sem querer, tento me desculpar sem palavras, mas a menina sai mais rápida que meu olhar.
            Todos descem na plataforma. Agora, a vida ganha lucidez e velocidade. Imensas bancas de frutas ao lado da plataforma seduzem com o colorido. Muitas cidades podem ter esses monstros de metal vociferando e buzinando nas pistas, carregados de gentes sonolentas e sem muita inspiração. Mas só minha cidade pode ter, ao lado do berço dos monstros, as últimas frutas da estação.
            Arrisco uma conversa. Bonita placa, escrita poética de laranja do céu, bem doce. O dono da banca, cheio de sotaque, diz que a pera, então, está mais doce ainda. Pega uma e parte um pedaço pra mim. Doce mesmo! Diz que fica ali 24 horas. Imagina, 24 horas de fruteira aberta! Prometo voltar. Sorrisos.

Como eu posso estar
Perceber, criar
E me encontrar em outro caos, em outro corpo
Onde eu não sofro
Onde eu não sou ninguém
Onde eu não sou ninguém
Qual é o fundo do mundo da gente?
            Tem uma hora em que o vazio encontra a inspiração no simples cotidiano de um cochilo em viagem de volta pra casa, no ombro de uma desconhecida, imaginando o carinho amigo, a adivinhação infantil: “adivinha quem é?”

            É o soninho no ônibus, o ombro macio e as desculpas que não pedi, o sabor da pera, a caminhada na noite fria, passar pelo mercado fechando, adormecendo, vindo o próximo ônibus. É a lua linda imensa no céu, saborosa como o pedaço de pera partida, como a laranja de lua cheia, cheia de graça, que nem essa segunda-feira, esse dia que passou, a fruteira 24 horas aberta para dar sabor pra quem passa pela vida, em poesia, em sorriso, doce, bem doce.


Poemas/palavras/música: Sonhos Lúcidos - Gabriel Setubal/Diego Casas



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