02 agosto 2016

DESAMPARO


Maria Amélia Mano

                Nas paredes da rodoviária, nos vidros dos ônibus, as fotos de desaparecidos. Geralmente são crianças e jovens. Às vezes, mais raros, adultos e idosos. Os jovens, penso, são as perdas para a violência das ruas, do tráfico. Os idosos, penso, são as perdas de memória, os que já se perderam de si mesmos e, um dia, se perdem da mão de um filho como as crianças, um dia, se perdem da mão de um pai. Sempre penso que para as crianças há perda, rapto, tráfico, violência, redes de pedofilia. Para os adultos, tudo pode, desde a loucura até a violência do tráfico. Toda foto de desaparecido me entristece. Desaparecer deve ser pior que morrer.

                São sete irmãos. Inicialmente quatro homens. Três mulheres-mães. Uma delas mora em outra comunidade, mais distante. Atendo a mãe, Valda, e as duas filhas, as irmãs Nara e Eunice. Atendo os filhos de Nara e Eunice, os netos de Valda. Valda, Nara e Eunice sempre estão separadas, caminhando nas ruas da vila. Relações difíceis. Um dos irmãos morreu atropelado. O outro está preso. O mais novo é usuário de drogas, some por longos períodos. Fica desaparecido. Dos quatro irmãos, somente um, o mais velho, tem família e vive razoavelmente bem, em outra comunidade.

                Valda teve tuberculose. Escondia da família. Fez promessa pra se curar e todo natal faz festa na rua. Distribui brinquedos. Nara se mudou da vila, mas passa parte do tempo na casa da mãe. O agente de saúde tirou ela do prontuário porque não morava mais. Ela disse que tinha direito. Armou barraco. Arma barraco quando não tem consulta, quando demoram, quando falta anticoncepcional. Diz que vai ser culpa do posto se engravidar. Eunice é a mais fácil de lidar. Fez todo o pré-natal do filho comigo e a puericultura até ele ter mais de um aninho. Sempre me abraça.

                Uma tarde, na fila do ônibus, encontro as três juntas. Coisa rara. E nem estavam brigando! Cumprimento. Muito quietas todas. Entramos juntas no ônibus e Eunice senta do meu lado. Fala que estavam vindo da delegacia. Irmão mais novo estava sumido há dois anos. Policial chegou na casa de Valda e disse que tinham achado o corpo em um matagal. Eunice lamenta da mãe estar sozinha, na hora, sem apoio. O policial pediu para ir na delegacia para “encerrarem o caso”. Sem chances de achar os culpados. Resolveram ir juntas, todas, apoiando a mãe que tinha esperança de ainda encontrar o filho vivo. Tinha 22 anos.

                Eunice fala dos filhos, com esperança e medo. Diz que reza todos os dias por eles: “ter filho homem na vila é complicado...” E o ônibus chega. Todas saímos na mesma parada. Nos despedimos e nos abraçamos em um momento raro. Todas juntas. Valda triste. Nara menos reativa. Eunice, mais doce, sempre. Olho de longe as três se afastando. Mais uma história de mães, de mulheres, de ausências. Ausências que se repetem. Ausências temidas pelas mães de meninos da vila, mesmo quando ainda pequenos. Ninguém quer a foto de um filho estampada na parede da rodoviária, do ônibus. Ninguém quer que a morte de um filho seja um caso encerrado. Como se não doesse mais.

                A caminhada até a unidade é curta, mas o pensamento é longo. A tarde também é curta, calma. Algumas despedidas. Algumas decepções. Mundo correndo. Tempo passando. Coisas que não mudam. Pensamento ainda longo. Vento frio de espera na fila do ônibus de volta pra casa. De noite, olhando o dia que foi, pela janela da memória. Desaparecer deve ser pior que morrer, repito a frase de efeito, lembrando os cartazes e um, em especial, que me comoveu tanto que fotografei. Carinha de desamparo. Carinha já de perdido antes de se perder... Torcida que não seja caso encerrado, um dia...

                Porque, no fundo, no fundo, vez ou outra, penso, temos essa carinha de perdidos mesmo, desamparados, despreparados para as ruindades. E quando ela vem, malvada, daí o que nos resta é fazer que nem Valda, Nara e Eunice. Esquecer as desavenças, as pequenezas, as disputas. Estar junto na dor, na perda, na indiferença de autoridades que lidam com a morte como lidam com carimbos e assinaturas. Burocracias. Andar juntas, mesmo em silêncio, mesmo distantes, mesmo que daqui a pouco, de novo, em pequenas desavenças, mas carregadas de sonho e do sono de seus meninos adormecidos em casa, salvos, vivos, nos seus colos de alívio e amparo.  

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