09 setembro 2016

O SEGUNDO DIA - FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS VERDE OLIVA


Verde-Oliva. Ernande, 2016.
Ernande Valentin do Prado
No segundo dia, chegamos cedo de novo ao batalhão. No dia anterior passamos pelo interrogatório. Hoje, algumas pessoas já não voltaram, já haviam sido dispensados. Alguns felizes zombavam de quem ficou, outro foram embora tristes, houve até moleque chorando, pedindo para ficar.
Quem ficou, como eu, já era tratado como recruta, como inevitavelmente incorporado, apesar de minha esperança de que ainda aconteceria algo e eu escaparia.
Ao chegar, por volta das setes horas, fomos reunidos em frente a pista de atletismo. Um bando de moleques usando jeans, camisetas coloridas, cabelos grandes, penteados chamativos, visual diverso que iriamos perder em poucos dias, tendo roupas, cortes de cabeço, comida e postura padronizadas. Pensando bem, o exército foi o luar mais comunista que já conheci, olhando do prisma preconceituoso do discurso dos próprios militares, que diziam na época, em instruções doutrinárias, que na União Soviética não existia liberdade, que ninguém podia falar mal do governo, que todos eram iguais, que a população tinha que se vestir do mesmo jeito, com as mesmas cores, comer as mesmas coisas. 
Quando chegou um volume grande de gente, os cabos, soldados e sargentos responsáveis pela recepção, ordenaram a formação de filas, um atrás do outro. Pessoalmente posicionavam os meninos com dificuldades motoras. Gritavam para que tomássemos distância, estendendo o braço direito sobre o ombro da pessoa da frente. Começavam as primeiras ordens unidas, o que seria rotina, dali para frente.
- Conscritos, em forma! Grita um soldado antigão.
- Meia volta, volver.
- Direta, volver!
- Esquerda, volver.
Um grande número de conscritos, como eram chamados os futuros recrutas, erram a direção, confusos entre o que é direita e esquerda. Os militares por convicção, divertem-se com a confusão, como se eles mesmos nunca tivessem passado por essa humilhação. Riem, dão gargalhadas, apontavam com o dedo, zombavam dos moleques, mas não perdiam a oportunidade de gritar na orelha de quem errou, como se aquilo fosse grave, uma ofensa ao serviço militar:
- Mocorongo.
- Bisonho.
Ainda hoje encontro colegas de farda, nas redes sociais, que não veem isso como humilhação, mas como algo típico dos militares, sem maldade, brincadeira inocente dos fardados. Não concordo. O principal sentido da palavra mocorongo é pejorativo, adjetiva “indivíduos com comportamentos desajeitados, considerados estúpidos, bobos ou com um raciocínio lento ”. Já bisonho quer dizer: “Sujeito que não presta atenção nas coisas ao seu redor. Pessoa que não entende direito as coisas. Aquele que faz tudo errado .”
A risada dos militares, o modo como se divertiam com a inaptidão física, com a falta de coordenação dos meninos na formação, do ponto de vista psiquiátrico, não parecia normal, ainda hoje, quanto mais penso nisso, mais convicção tenho. Era meio que regra, nove em cada dez militares, pareciam ter comportamento sádico. Muitas vezes, durante ordem unida, rastejando na lama, tirando guarda de madrugada, imaginava os superiores: sargento, oficiais, comandando ordem unida no café da manhã, na cozinha de suas casas, exigindo que a esposa esticasse o lençol da cama, batesse continência, xingando o filho de setes anos de mocorongo por trocar a letra s por z, fazendo pagar dez flexões por cair da bicicleta, mandando prender sua companheira por queimar o feijão, para detenção por ter mais sal no arroz do que ele queria.
Eles ordenavam, provocavam ações sabendo que iriamos errar e se divertir com isso. Quer dizer, acho que faziam para se divertir. Pareciam estar se vingando por terem passado pela mesma coisa. Assumiram o comportamento do agressor, tornaram-se eles mesmos agressores, como forma de não se sentiram agredidos, como se isso fosse apagar o que sofreram.
- Esquerda é o lado do braço do relógio, mocorongos.
- E quem não usa relógio, sargento? Gritou Marcelo
- Esse não vai ter jeito, sargento, só vai servir para limpar banheiro e tirar cadeia. Disse o cabo.
O terceiro sargento, com cara de assustado, mas tentando manter a pose, talvez temendo os mais antigos, mas sem conseguir disfarçar o comportamento repetitivo e sem convicção, tomou o comando do soldado e tentou impor a ordem entre os civis.
- Conscritos: direita, volver...
- Ele comandou direita, mocorongo... gritou o antigão na orelha de mais um que errou o lado.
- No exército o soldado tem três direitos, fala compassadamente o sargento: Um, não ter direito. Dois, não reclamar do direito que tem.
Silenciou, como se tivesse esquecido qual era o terceiro direito.
Marcelo, não perdoa:
- Qual meu terceiro direito, sargento?
Esta foi a primeira vez que vi Marcelo, de quem nunca cheguei a ser próximo, mas acompanhava suas peripécias de longe, admirado da coragem, da irreverencia, da capacidade de debochar, de desafiar ordens, ir preso e não se deixar dobrar. Estava sempre aloprado: farda amassada, a gandola para fora da calça, coturno sem amarrar e sem graxa, fivela opaca, de tão suja. O gorro virado para trás, barba sem fazer. Corria a lenda que ele pegava cadeia ou detenção toda semana, que raramente saia do quartel. Um exemplo de como não deveria ser um soldado padrão, talvez por isso o admirava, mas ao mesmo tempo era uma rebeldia sem causa, pensava eu, ao menos não identificava qual sua causa.
Depois de inevitavelmente incorporados, no primeiro acampamento de 1989, na fazendo Nego Moisés, nos arredores de Apucarana, onde eram realizados a maioria dos treinamentos de campo, certa tarde reuniram-se uns 12 soldados para receber instruções no pé de um morro (não lembro mais o assunto). Estávamos todos arrebentados, na noite anterior meu grupo perdeu a hora da janta, não havíamos dormido: passamos toda madrugada molhados, com frio e fome, fazendo exercício de orientação noturna. Não estávamos em Pelotões, pelo que me lembro, pois Marcelo nunca foi do PELOPES, aliás, haviam outro Marcelo na companhia, um com descendência japonesa, que passou todo o ano tentando convencer-me que não era rico, que seu pai era caminhoneiro, mas eu sempre dizia:
- Não existe japonês pobre. E ele sempre argumentando:
- Eu sou o único.
Porém não é desse Marcelo que estou falando, mas do outro, que realmente era rico, rico e irresponsável, diziam quem lhe conhecida em sua cidade de origem, Arapongas ou Rolândia, não lembro mais.
Dois terceiros sargentos e dois cabos se revezavam em orientações (ou seriam torturas?). Eles achavam engraçado o que faziam, eu nunca consegui achar e ainda não acho. Depois de um tempo comandando:
- De pé um, dois!
-  Sentado um, dois!
- Rastejar!
- Marcha do pato, seu bisonho!
- Tora de três minutos!
O sargento mais antigo achou que seria divertido deixar que alguns soldados torturassem seus companheiros de farda, talvez para que sentissem o prazer do sádico, do torturador. Lembrei do livro Brasil Nunca Mais, quando os torturadores obrigavam os torturados, como forma de tortura, talvez a pior delas, a impor sofrimento em seus próprios companheiros.
Escolhia, apontando com uma antena de rádio de carro, quem poderia comandar o grupo por alguns minutos.
- Você.
O soldado escolhido assumia o comando e repetia as mesmas ordens ridículas, humilhantes e sem sentido: de pé um, dois! Sentado, um dois! Levantar, rastejar, rolar para esquerda, rolar para direita, marcha do pato.
Fez isso uma, duas, três vezes, irritando todos e criando divisão entre os soldados. Indeciso, sem saber quem chamar, acabou permitindo que Marcelo, que eufórico, insistia em ser chamado. 
Marcelo assumiu o comando com um sorriso estranhos nos lábios. Meu primeiro pensamento foi:
- Porra, até você Marcelo?
Ele ficou em pé, na frente dos soldados, tentando se recompor, por a camiseta para dentro da calça, amarrar o cadarço do coturno. Eu pensado, o que faria eu, se me fosse ordenado assumir o comando do grupo?
 Marcelo não teve dúvidas:
- Sentido!
- Descansar!
- Sentido, descansar!
- Tora de 15 minutos.
Todos os soldados, exaustos, deixara-se cair ao chão e deitaram imediatamente.
O sargento não desfez a ordem, mas retirou o comando do soldado na hora. Olhou para uma árvore isolada no alto do terceiro morro e disse:
- Soldado, vai correndo naquela arvore e traz uma folha, enquanto seus colegas descansam. Vou ficar olhando...
Marcelo virou meu herói naquele primeiro acampamento. Com ou sem causa, pagou o preço pela irreverência, por afrontar o exército, mas colocou um limite, como quem diz: “não quero ser como vocês”. 
Ao lado da pista de atletismo, o sargento novato, com cara de medo disfarçada de brutalidade, não responde qual o terceiro direito. Caminha até Marcelo, aproxima seu rosto do dele, de forma intimidadora, olhando de cima, de baixo de seu gorro:
- Você vai ser o engraçadinho, todo ano tem um?
- Só queria saber qual meu terceiro direito, sargento, fala sem disfarçar a intenção de zombar do sargento.
- Tá vendo aquele canhão, engraçadinho? Diz o sargento olhando em direção ao campo de futebol, onde tinha um canhão antigo, usado como decoração.
- Vá correndo até lá e volte com aquela pedra branca que tá perto dele.
Marcelo saiu de forma, começou a caminhar até o canhão. O sargento gritou:
- Correndo, conscrito!
Mas ele não correu, foi e voltou andando. Na sua orelha um antigão gritando, todo o percurso:
- Correndo, conscrito, seu bisonho, mocorongo do caralho. Você vai lavar muito banheiro, vai tirar muita cadeia.
Mas ele ignorava completamente o antigão e os gritos, como se fosse um mosquito incômodo, nada mais. Pegou a pedra, depois a soltou e voltou, parou em frente ao sargento, como quem diz: “vai mesmo querer encarar?”, mas disse mesmo:
- A pedra era muito pesada, sargento, por isso resolvi não trazer.
Eu estava do lado, não aguentei a cena e ri. O sargento, talvez prevendo que era melhor desistir de tentar dobrar o conscrito irreverente e abusado, abertamente desafiando e não reconhecendo sua autoridade, vira-se para mim:
- Achou graça, conscrito?
Em princípio não respondi. Ainda tinha muita esperança de ser dispensado e achava melhor não abusar da sorte. Mas ele chegou bem perto, gritou no meu rosto e gritou de novo, espirando saliva em mim, quase implorando que o enfrentasse:
- Achou graça, tá rindo da minha cara? Quer ir correndo ao canhão buscar a pedra? Ou talvez queira que eu vá...
- Se quiser ir, fique à vontade, não me importo. Disse sem conseguir me conter.
- Qual seu nome? Continuou gritando.
- Você que é o Prado? Disse andando em volte, olhando de cima para baixo, como se estivesse medindo meu corpo, minha moral.
- Você é voluntário, conscrito?
Essa pergunta, inicialmente me pareceu uma dúvida legitima, mas lembrei-me do que disse o sargento bigodudo, no primeiro interrogatório, no dia anterior, ao ouvir que eu não queria servir:
- Você vai servir, agora não tem mais jeito de sair.
Fiquei em silêncio, demonstrando não acreditar. Ele ainda me deu outra chance de refazer minha resposta:
- Você é voluntário?
- Não.
- Tem certeza?
- Tenho.
- Você não entendeu, você não vai sair, já foi incorporado. Afirmou o sargento, com a caneta na mão, indicando que precisava assinalar a resposta.
- Não sou voluntário, tenho certeza.
- Você que sabe, mas já te disse, você já foi incorporado, o melhor é dizer que é voluntário, vai sofrer menos.
- Não quero servir, mas se tiver que ficar, quero que todos saibam que é contra minha vontade.
Até a terceira baixa, essa mesma pergunta: você é voluntário? Nunca deixou de ser repetidamente feita e refeita em diferentes situações, por diferentes militares, até de companhia deferentes, de cidades e estados diferentes. Em manobras nas margens do Rio Guaíra, na fronteira com o Paraguai, juntos com pelotões de outras cidades do Paraná, o sargento Bil, figura atrapalhada que disparou acidentalmente um morteiro por sobre a tropa, sem nunca ter me visto antes, olhou-me, deitado na grama, junto com os pelopianos e tascou:
- Você que não é voluntário?
A essa altura, já tinha percebido que a pergunta era, na verdade e talvez já na primeira vez que foi feita, pura coerção moral.


[Ernande Valentin do Pradinho publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]


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