Maria Amélia Mano
Quando o inverno chegar
Eu quero estar junto a ti
Pode o outono voltar
Que eu quero estar junto a ti
Tim Maia
Carla
chega com uma touca de lã na cabeça. Mal se vê o rosto. Rostinho pequeno que
ficou menor ainda com a touca imensa. Conheço Carla desde que perdeu a mãe,
depois achou que estava grávida, depois perdeu o emprego, depois começou a
fazer calos imensos nas plantas dos pés que a impediam de caminhar para
procurar trabalho, depois teve conflito com os filhos adolescentes, depois veio
a tristeza de tudo e a busca mágica pelo remédio da felicidade, depois veio o
desapaixonamento pelo marido e depois, o carinho por ele, grande companheiro.
Muitas
fases em muitos tempos de consultas, conversas, confissões e abraços longos. O
que seria agora? É inverno, dia frio, mas não tão frio para aquela touca de lã.
Pergunto. Ela me olha e tira a touca, mostrando os cabelos lisinhos bem mais
curtos e esfiapados: “vendi os cabelos”. O filho mais velho foi preso em flagrante,
tentativa de furto. Foi colocado em presídio em outra cidade. Carla, desempregada,
não tinha dinheiro para a passagem. Esposo vivendo de pequenos serviços. Então,
foi no centro e vendeu os cabelos que estavam quase na cintura.
Ficamos
em silêncio até que, entre lágrimas, ela me conta que foi a primeira vez que o
filho se envolveu com roubo, que é menino bom, que foram as companhias, que
estão passando por dificuldades, que ele estava revoltado, que não sabe no que
errou com ele. Diz que bateram no filho e que se preocupa pelos ferimentos e
que, na prisão, não tem cuidados. Se sentiu humilhada na visita, na revista,
quando pediram para tirar o sutiã que era de bojo, com arame. Não consegue
dormir e quando se olha no espelho, se sente feia com o cabelo que restou...
Escuto.
Acalmo. Consolo. E, quando Carla sai, procuro a agente de saúde da área, Luíza.
Luíza tem habilidade especial que diz que mantém em segredo para não ter muitos
pedidos na comunidade: corta cabelo. Converso, convenço, combino. Na semana
seguinte passo na casa de Carla. Filho será julgado antes do fim do mês, réu
primário, habeas corpus. Entende pouco de leis, mas está esperançosa. Eu que também
não entendo muito, reforço a esperança e de que tudo isso servirá como
aprendizado para ele, uma lição, talvez.
Os
dias continuam frios, mas Carla está sem a touca, agora. Cabelos aparados,
corte moderno que deu jeito nos fios. Elogio que está bonita. Ela sorri, sem
falar. Sabemos que o tempo vem resolvendo as tristezas e as perdas, que o filho
sairá da prisão, que estarei sempre ao lado dela, que os cabelos vão crescer
novamente. Mas enquanto o tempo quente não chega, junto da agente de saúde, combinamos
um carinho, um alívio, só para ela se sentir mais bonita, mais orgulhosa de
descobrir o rosto pequenino, que nem florzinha de primavera.
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