27 setembro 2016

SEDE DOS MARUJOS [Maria Amélia Mano]


Maria Amélia Mano


Se amavam com a sede dos marujos
Lavando os olhos sujos, de mar e de embarcações
Se devoravam com a fome dos presídios
Com a festa dos sentidos guardados em seus porões

Ivan Lins - Vitor Martins

            Não sei como começou. Talvez ao acaso, sem pensar, como quase todas as coisas valiosas e inesquecíveis. Passeios na serra do Araripe para buscar galho pra árvore de natal. Pequena trilha encantada que o pai recheava de histórias. Ou seriam nos quilômetros de ida e vinda em estrada de terra para estudar. Cada carro que passava me enchia de poeira fina. Eu tentando me proteger com sombrinha com cabo da pantera cor de rosa. Coisa de criança que ainda gostava de ser.

            E aprendi a caminhar por caminhar. E caminhava, caminho, sonhando. Entre o acaso e a escolha. Como o Forrest Gump do filme. Elaborando perdas, me aproximando de destinos distantes, me distanciando de lembranças tristes, arrumando os passos do pensamento. Como o personagem, perguntam se é por uma causa: ecologia. Ou se é por saúde. Mas é por memória boa de infância, invenção de mundos, desarrumação de cabeça, desatenção que proíbe carro, ou só prazer.

            Não tem engajamento ou discurso. Não tem defesa. Mas a cada dia, tem uma produção de caminhada. Seja pelas pedrinhas que recolho e nomeio, mágicas. Seja pelas ideias que surgem. Seja pelas muitas inspirações misturadas. Uma delas, queria gravar e escrevi na areia onde meus pés pisavam. E cantei canção antiga de marinheiro e náufrago. Canção de amor. Canção de se refazer. E a espuma banhou meus pés feridos de tanto mar e areia. O chão me doía e era preciso voar, talvez.


            Mas preferi olhar as palavras na areia. Lutar contra a maré, só um pouquinho. E pensar sempre que precisamos refazer nossas utopias. Essas que são que nem velas gastas nos ventos. Pensava nesses tempos árduos de política e desmonte. Que não podemos ficar presos em luta antiga e é preciso buscar na luta antiga, um novo fazer, um novo aprender. Descobertas novas e novas lutas. Refazer, recriar utopias, as novas, as velhas, as que nos fazem seguir. As que nos dão e nos tiram rumo. Por vezes, são as mesmas...  



            E cantava pensando no mundo de fora. Esse mundão de tirar coisas, de ameaçar projetos bonitos. Mas, também, cantava pensando no mundo de dentro. Esse mundinho de juntar coisas, de sonhar sonhos bonitos. De querer guardar momentos e de querer olhar a palavra se fazendo e se desfazendo em onda morna. Não é que ela suma, não! Ela não some. Ela só viaja, sedenta, marinheira, utopia, resgatando as garrafas com bilhetes de amor das profundezas do mar.







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