PELOPES na Serra do Cadeado, 1989. |
Ernande Valentin do
Prado
Durante muito tempo, no quartel, entendia que a
única função verdadeira de um soldado era tirar guarda, não conseguia ver outra
utilidade. Portanto, se o quartel não existisse não teria necessidade de
soldados. Em 1989, com a possibilidade de Lula ser eleito presidente, o
trigésimo batalhão de infantaria motorizada (30 BIM) quase sempre estava em
alerta, o que significava guardas dobradas, no lugar de um soldado por posto,
havia sempre dois, o que significava estar na guarda há cada 24 horas.
A guarnição era composta por soldados, cabos,
sargento e um oficial de dia, que respondia por todo o batalhão, após o
expediente e na ausência de outros oficiais mais antigos de serviço. Havia a
guarda do quartel e a guarda do Paiol, local onde ficava a munição. Dela faziam
parte os soldados, que usavam munição real, fuzil 762 e pistola 9mm., cabos e
sargentos. Os plantões ficavam de prontidão nas companhias e em outros lugares
estratégicos, como a oficina, a cozinha, e algumas vezes, a sala de armas de
cada companhia, mas desarmados. Também fazia parte da guarnição, um cabo e
soldados responsáveis pela segurança das casas aonde moravam as famílias de
oficiais e sargentos e da casa do tenente coronel, no centro urbano do
município onde estava o batalhão. Além disso, havia a patrulha, que circulava
pela cidade, com um sargento e soldados, para verificar alterações entre
militares e a população civil.
Antigo era chamado o militar com mais tempo de
incorporação e não exatamente o de mais idade, embora, no caso dos soldados,
quase sempre idade e tempo de incorporação era a mesma coisa. Por exemplo, os
solados incorporados eram sempre mais antigos que os soldados que cumpriam
apenas o tempo obrigatório e certamente com mais idade. O cabo era sempre mais
antigo que o soldado, o sargento mais antigo que o cabo, o tenente mais antigo
que o sargento, independente de idade cronológica. No caso dos solados
incorporados no mesmo ano, a antiguidade se dava pela data de nascimento
simplesmente. E existia essa hierarquia até entre os soldados, apesar de que,
entre soldados e cabos, valia também a capacidade de liderança. O soldado na
hora, adquiria automaticamente antiguidade, que, em certas situações, valia até
sobre patentes.
Em cada ponto estratégico, ao redor do quartel,
haviam postos de guardas, ou seja, onde ficava um soldado armado, vigiando para
que o quartel não fosse invadido e se fosse, que o invasor não saísse. O número
de soldados na guarnição, que durava 24 horas, era sempre três vezes maior do
que o número de postos de guardas, o que permitia revezamento há cada duas
horas. Soldado da hora era quem estava em um dos postos de vigia. Cada hora era
designada de primeiro horário, segundo horário e terceiro horário. Os soldados
tentavam, a todo custo, evitar o segundo horário, entre as 10 e 12 horas, 16 e
18, 22 e zero hora, quatro e seis horas, isso porque ficavam sem descanso. Por
exemplo, a partir das 22 horas o solado poderia dormir no alojamento da guarda,
desde que não estivesse na hora, mas 22 horas era quando iniciava o segundo
horário. Depois, no final da madrugada, no melhor do sono, tinham que voltar ao
horário entre as quatro e às seis da manhã. Enfim, era horrível o segundo
horário, pior ainda se fosse atrás da fundação de saúde, FS, como era
conhecida. Posto escuro, de costas para as companhias, onde poderia ser
surpreendido por todos os lados e não ter como reagir, sobretudo ser
surpreendido pelo ronda.
Pelo que me lembro, apenas uma ou duas vezes
peguei o segundo horário, pois, conforme a ordem de entrada na companhia, o
soldado tinha o privilégio de escolher horário e posto aonde tiraria sua
guarda. Acordo sem palavras, mas respeitado, quase sempre por quase todos,
inclusive cabos e sargentos.
Certa vez, no segundo horário, atrás da FS, vi
Moacir, um soldado muito certinho, saindo sem autorização. Era sábado à noite e
foi se encontrar com alguém. Longe de mim impedir. Só combinei direitinho a
hora em que voltaria, para não atirar nele imaginando ser uma tentativa de
invasão. Aliás, imagino que todo soldado de serviço desejasse que houvesse uma
invasão, só assim para quebrar o tédio de um guarda, sobretudo nos fins de
semana.
A função do ronda, sargento que fazia a ligação
entre os postos da guarda, teoricamente, era conectar um soldado na hora ao
outro, que não poderiam sair de seu posto. Levar e trazer mensagens, verificar
se havia alguma alteração, vulnerabilidade no perímetro. Na prática, ao menos da maioria dos
sargentos, o ronda apenas verificava se o solado na hora não estava dormindo,
se estava posicionado no lugar certo e alerta. Quando o soldado na hora, no
período noturno, avistava o ronda, deveria dizer:
- Alto lá, qual a senha?
E o ronda, quase sempre um terceiro sargento,
deveria responder a contrassenha: no natal a senha foi: “feliz natal” e a
contrassenha: “vai se foder”.
A escala dos rondas obedecia os mesmos
primeiro, segundo e terceiro horários. Com o tempo o solado aprendia os hábitos
dos rondas: se passava mais de uma vez, de que lado vinha, se no início da
hora, no meio ou no último momento, se seguia a rota oficial ou inventava novos
caminhos.
Vez ou outra o Capitão Ricardo, da primeira
companhia, que era verdadeiramente um sátiro, apesar da fama de durão, colocava
soldados de punição tirando ronda junto aos sargentos. Várias vezes vi o ronda
se aproximar com dois ou três soldados marchando ao seu lado nas madrugadas
escuras e frias do 30. Ratinho, soldado raquítico e com dois dentes
protuberante para frente, como de ratos, era um freguês habitual deste tipo de
punição. Fez ronda uma, duas, três vezes, mas em uma das oportunidades, ele
apareceu na ronda de capacete de aço, que todos odiavam usar e carregando um
lançador de morteiro. Outro carregava um galão de combustível, cheio de água.
Foram punidos porque, usando carteira do exército, compradas no alfaiate do
batalhão, deram voz de prisão para brigões na Scorpions, casa noturna de
Apucarana. Quando a polícia chegou e viu os dois agindo como polícia, deu voz
de prisão e chamou o batalhão.
Nesta noite, estava no terceiro horário, entre
a meia noite e às duas da manhã, em um ponto totalmente escuro entre a primeira
e a segunda companhia. Mas desta vez não vi a marcha macabra dos soldados
cumprindo punição e sim um ronda agindo como se estivesse bêbado, drogado ou
apenas, como eu, desprezasse a regras e normas militares.
Vi quando o sargento enfermeiro e o soldado
auxiliar de enfermagem, que o acompanhava, atormentar o guarda do posto
anterior. Acendia e apagava a lanterna no olho do soldado, tragava e jogavam
fumaça na cara dele, falavam alto, batiam na aba do gorro, tentavam tomar o
fuzil do soldado.
Fiquei pensando sobre o que faria quando esse
ronda se aproximasse de meu posto: tolerar as brincadeiras ou dar voz de prisão
e chamar o sargento da guarda? Como chamar o comandante da guarda sem poder
sair do meu posto? Poderia chamar o plantão da primeira companhia, mas ele
poderia se recusar a sair de seu posto. Daria um tiro para o alto, alertando
todo o batalhão, com maior gravidade do que o necessário? O que fazer?
Lembrei das instruções do sargento Borba e do
sargento Mendonça, que enfatizavam que o soldado na hora era autoridade,
ninguém poderia o desrespeitar. Eu era o guarda na hora, usava fuzil e munição
real, capaz de despedaçar uma pessoa, como o ronda podia agir daquele jeito?
Não ter respeito, tudo bem, mas não ter medo de levar um tiro?
Certa vez, durante um evento festivo no 30, o
quartel ficou cheio de civis, que circulavam abertamente por toda parte,
acompanhados de guias militares. Nesta data, que não lembro qual, a guarda era
dobrada, ou seja, no lugar onde normalmente tinha um soldado, haviam dois. No
posto, entre o campo de futebol e a parede traseira da oficina, estavam de
guarda eu e Ugo. Ele se posicionou na calçada no entorno da oficina e eu mais
abaixo, na calçada entre o campo de futebol e o asfalto.
Vi passar um cabo todo engomadinho, segurando
uma agenda, com um grupo de meninas e elas perguntaram à ele, referindo-se ao
Ugo:
- Por que esse soldado tem a farda diferente da
sua?
Outra acrescentou:
- E o que é essa tarja amarela escrito PELOPES
e aquela caveira no boné?
O cabo, olhou com autoridade para Ugo e disse:
- Soldado, venha até aqui.
Ugo, na hora, com o fuzil apontado para baixo,
mas em posição operacional (teatral – que ele também era um sátiro, até pior
que o Capitão), virou as costas, ignorou o cabo e continuou andando. O cabo,
sem ter o que fazer, disse:
- É um soldado embusteiro. Ignorou as outras
perguntas e seguiu para outro ponto.
No meu posto passou o próprio Tenente Coronel,
comandante do 30. Famoso militar com curso de Selva no Amazonas. Estava com um
grupo de civis que pareciam figuras importantes, talvez por isso o próprio
coronel era o guia. Circulavam ao meu redor, um lugar que deveria ser restrito.
Pensei: o que faço: “digo para se afastarem e corro o risco do tenente coronel
me punir ou não falo nada e corro o risco do comandante me punir por ignorar as
regras?” Aproximei-me do comandante, sem nenhuma reverência, acreditando ser
eu, como guarda na hora, a maior autoridade e disse:
- Permissão, coronel (palavra chave para se
dirigir ao superior): aqui é área restrita, poderiam circular mais para lá?
O tenente coronel desculpou-se e levou os civis
para outro lugar. Se não deixei nem o comandante do batalhão desrespeitar a
autoridade do soldado na hora, poderia deixar um ronda qualquer fazer isso?
Os dois, ainda rindo e zombando do soldado do
posto anterior, vinham em minha direção. Continuei no escuro, evitando que me
vissem. Mas não pedi a senha de aproximação, apenas ignorei. O sargento, sem
conseguir me ver, mas sabendo estar próximo, gritou: não vai pedir a senha,
soldado. Do escuro, evitando que ele pudesse me identificar, disse:
- Já identifiquei quem são os palhaços que
estão fazendo ronda, não preciso da senha.
- Tá alterado, soldado? Respondeu o sargento.
- Eu não, mas o senhor está, então vamos
combinar o seguinte, passa direto e finge que não me viu aqui. Se acender essa
lanterna na minha cara, como fez com o outro guarda, vou te dar voz de prisão.
- Eu sou mais antigo, soldado...
- Na hora, sargento, ninguém é mais antigo que
eu, além disso, não estamos em um exercício, não é um treinamento. Meu fuzil tá
com munição real, numa guarda real, não tô aqui brincando de soldado.
- Você é do PELOPES, soldado?
- Circulando, sargento. Respondi, sem sair do
escuro.
Eles seguiram em frente:
- Não dá para brincar com esses pelopianos.
Resmungou caminhando.
No posto seguinte, ouvindo música, rindo e
falando alto, recomeçaram com as brincadeiras, acendendo e apagando a lanterna
na cara do soldado de guarda.
Meia hora depois chegou o sargento Borba, que,
embora brincalhão, não era de brincadeira. Estava na patrulha pelas ruas de
Apucarana. Parou a viatura do lado da companhia, em frente meu posto. Sai do
escuro, para que ele me identificasse e viesse até mim. Relatei o que estava
acontecendo e ele foi acordar o oficial de dia.
[Ernande
Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-eiras]
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