28 fevereiro 2017

MARÇO [Maria Amélia Mano]


Maria Amélia Mano

            São 40 anos no mesmo território e veio a remoção. Nem todos foram de início. Burocracias, documentos, cadastros, desmembramentos em novas uniões, separações e novas configurações. Mais de 10 anos cadastrando sem saber que a vida pode mudar em 10 meses. 

            E veio a primeira leva de moradores, a segunda, a terceira. Mais uma. Demora de três anos para remover as 200 famílias restantes. Território antigo já no abandono e em novas lutas por visibilidade e cuidado. Território novo se reconfigurando.

            Mais burocracia. Espera. Um grupo de outras comunidades ocupa as casas em uma única noite. Desesperança após tanta espera. Ausência de respostas do poder público. E o povo vai ficando. Os de lá ficam lá. Os de cá permanecem: os legais e os "ilegais".

            Os que ocuparam. Estigmatizados, os invasores são os fora da lei. São os "culpados das violências, das desordens, de tudo. Chefia diz que não é pra vincular, cadastrar, que não é pra abrir prontuário. Tudo pode ser usado a favor deles, contra os "nossos" que lá ficaram, aguardando o que é "de direito".

            Mas tem gente doente, grávida que espera, criança que chora. Tem senhorinha que o filho comprou casa de invasor por cinco mil reais. Sim, já tem ocupante que vendeu. Já tem comércio. Piscina de plástico cheia de menino. Tem casal jovem e muito pobre que traz a filhinha com lesão na face. Criança com o sorriso mais lindo!

            Tem homem e enteado com olhar triste. Tem mãe que não tem dinheiro para levar filho com laringite à emergência. Chamo SAMU e torço que fique bem. Torço. Tem menina esperançosa que mora em barraco perto, tábuas com frestas. Filhinho pra criar sozinha. Ouviu dizer que tem casa vazia na invasão. Que tem gente que ajuda a ocupar.

            E ouço as histórias de quem está, de quem quer vir, de quem ocupou. Julgamentos cruéis e esperas, revoltas. Boatos e ameaças. Diz que vai ter grande aparato policial para retirada dos invasores. Que vai ser em março. Operação grande. Penso em todos. A senhorinha, a menininha de sorriso lindo, o homem e o menino de olhar triste, a menina solitária do barraco.

            Como não gostar? Como não se vincular? Não ter cadastro oficial na unidade não garante não ter afeto, não torcer que ninguém se machuque, que arrumem um abrigo para todos os cansaços, todos os sorrisos, todas as crianças, todos os sonhos, todas as esperanças, todos os medos, todos os outonos. Um abrigo. Um abrigo.

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