Maria Amélia Mano
ESSAS COISAS FÁCEIS, TÃO FÁCEIS...
Sou médica de família e
comunidade. “Mas o que é isso mesmo?”. Não menos de 15 minutos para explicar e
as pessoas lembram do velho clínico que ia nas casas, abnegado, pago pelas
famílias que podiam. É isso não, gente. Mas nem sempre importa. É tanta coisa
pra se preocupar. Cada dia, cada história que faz pensar em saídas que não
estão nos livros. Outros saberes, quem sabe aprender a alfabetizar? Fico quieta
no sonho, já escutando os olhares de estranhamento que dizem: “Ah, esses
médicos do postinho!”. Esses que lidam com essas coisas tão fáceis, tão
fáceis...
Julieta é irmã
de Júlia. Ambas filhas do mesmo pai violento e opressor. Imagem que o irmão
mais velho herdou, submetendo as irmãs menores. Julieta sofreu abuso deste
mesmo irmão e ambas resolveram fugir de uma casa que sempre foi ameaça e
desamor. Na rua, toda sorte de gente. Júlia conseguiu trabalho em casa de
família. Julieta foi para um prostíbulo.
Um
longo período de tempo separou as duas irmãs. Tempo em que Júlia casou e teve
duas meninas. Tempo em que Julieta teve dois filhos e perdeu a guarda dos
mesmos. Tempo em que encontrou Valdir e, com ele, foi morar em casa de verdade.
Engravidou de Aline, a menininha gorducha que acompanhei no pré-natal e
acompanho na puericultura.
Pré-natal
compartilhado com setor secundário por Julieta ser soropositiva. Acompanhamento
confuso. Julieta analfabeta, sem entender as orientações e com dificuldade de
ir nas consultas distantes. Internou antes e, no hospital, identificaram
equívocos, má adesão. Julieta disse que eu não tinha encaminhado, que eu não
tinha orientado, que de nada sabia. Recebo ligações da assistente social.
Explico, me explico. Sempre tentando mostrar uma competência sempre questionada
pela medicina dos hospitais.
Aline
ficou internada, foi acompanhada por um tempo e com a sorte dos sobreviventes náufragos,
negativou, não tem o vírus. Mas tem asma e lá se vai Julieta às voltas com
bombinhas, corticóides e internações. Na última internação, confusa, repetiu
que eu não havia dado os remédios, que não sabia que precisava usar espaçador.
Se me canso, às vezes. Se me magoa, sim, às vezes...
Julieta
descobre um diabete importante. Aline começa a “ficar estranha”. Há uma
suspeita de que Valdir esteja assustando a pequena e até, “mexendo onde não deve”.
Discutiram muito na gestação porque Valdir desconfiava que a filha não era
dele. Batia em Julieta grávida. Chamei a psicóloga e, juntas, resolvemos seguir
com investigações e denúncias. Avançamos. Nomeamos. Assinamos contrariando as
burocracias de um sistema. Essas coisas fáceis, fáceis...
O
marido de Júlia é assassinado pelo tráfico e ela vem com as filhas morar com
Julieta e a família. As duas se ajudam. Por Júlia, fico sabendo mais de
Julieta. Julieta se empodera e reafirma o abuso sofrido por Aline. Seguimos
adiante. Força para enfrentar o sistema. Juizado, conselho, medida protetiva,
exame em Aline, laudos e relatórios. Ligações longas nas tardes cheias de
atendimentos. Esforços nossos. Isso deve ser a tal da baixa complexidade com
que caracterizam a Atenção Prímária em Saúde. Tão fácil...
Mas
a “facilidade” do acompanhamento não termina aí. Vem a ameaça da mãe de Valdir:
perder Aline. Porque, um dia, perdeu outros. Porque, um dia, esteve na rua e na
vida. Porque é soropositiva e analfabeta. Porque não cuida de Aline e ela
interna por asma seguidamente. Porque não ganha um tostão e depende de passe, bolsa
família, cesta de alimentos de igreja e cartão de ônibus dado pela unidade,
para levar a menina ao médico.
E
Julieta recua. Diz que foi tudo um engano, influência de Júlia, invenção. Aos
poucos, vai se aproximando de Valdir, o único homem que lhe deu casa e família,
a única filha que consegue ter junto de si. Tento entender. Lembro a
desproteção de uma infância, a rua, a prostituição, o medo de perder a única
conquista. Julieta vítima quase eterna de violências. Júlia sai da casa da irmã
magoada e assustada. A assistente social se apavora com a iminente
reconciliação e pensa na perda da guarda... E a criança vai pra onde?
Capítulos
de histórias reais registrados minuciosamente no prontuário. Cada passo. Porque
sei que serei questionada. Porque sei que faz parte da doença social que
Julieta tem e que meu papel também é “me tornar culpada” para que ela possa se
eximir, se salvar, ou pense que possa se salvar de possíveis acusações, danos, negligências,
de possíveis culpas. Se é racional? Não sei, mas é o que a crueldade da vida
produziu. Produz e mantém.
Sobre
as recusas que abordei em texto anterior, sim, já pensei em deixar de atender
Julieta, pelo esforço que cai por terra a cada internação ou problema em que
ela delega a mim, a responsabilidade. Mas deixaria de atender o pai etilista
que faz a família sofrer, o esposo que insiste em fazer sexo com a esposa,
mesmo que ela não queira. E atendo a esposa e atendo as famílias. Não é o fato,
é o contexto, é o que envolve e quem envolve. Isso seria tecnologia leve? E,
com toda “leveza”, eles me procuram. Confiam em mim.
Julieta passa
tempo sumida. Falta consulta. Aparece magra, abatida, fora de horário, dizendo
que está com a glicose “lá em cima”. Disseram no pronto atendimento que tinha
que usar os remédios. Possivelmente, ela explicou que a médica do posto, eu, de
novo, não tinha dito nada, não medicava, não orientava... Já posso imaginar o
ar desorientado de Julieta. Vejo o julgamento dos colegas sobre esse
profissional medíocre que ganha menos, trabalha sem avental e lida com essas
coisas tão fáceis, tão fáceis...
Esqueço os
julgamentos. Abstraímos. Outros mundos são mais necessários. Julieta faz parte
de um mundo que desconheço, que tento me aproximar, entender. Eu faço parte do
mundo que, de alguma forma, ela olha de longe, distante, com desconfiança e
medo. É o mundo “dos outros” que silenciou quando vieram as violências e a
empurraram para a rua, para mais violências e silêncios. Eu busco razões dentro
e fora de mim.
Quem sabe se
eu entender o mundo das mulheres violentadas, cheias de medos, analfabetas. As
Julietas. Quem sabe se Julieta pudesse aprender a ler. Quem sabe Aline poderia
se salvar e quem mais for. Meninas estudarem. Luta óbvio. Óbvio não foi para
Malala. Fácil não foi, não é. E foi que pensei. Quero aprender a alfabetizar. Alfabetizar
pode ser prevenção para violência, abuso, medo. Que nome tem isso? Será que
isso é meu? Não sei. Só sei que é saúde e que sou médica de família e
comunidade.
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