Maria Amélia Mano
Era o tempo das
músicas proibidas pelo regime militar aparecerem nas rádios como gritos de
liberdade. Artistas voltando do exílio. Abertura. Meus pais me explicavam o
significado de algumas letras e com elas, eu aprendia o que era repressão e
ditadura. Pequena, achava que a escola parecia um pouco isso que eles
explicavam. Professora mandona e
diretora brava. Regras e hinos sem fim. Uniforme impecável. Castigo para os que
desobedeciam ordens sem sentido...
E foi em um dia de
vacinação para tuberculose que vi os opressores com suas pistolas chegarem "escondidos" na escola. Para mim, estavam armados. Dizem que vestiam branco, mas
eu me lembro de todos vestirem preto. Ou seria verde militar? Não importa. Como
subversiva, fugi com minhas irmãs e me perdi nas ruas da cidade até chegar em
casa no meio da manhã. Era quinta-feira santa e meu pai cozinhava bacalhau e
ouvia rádio: caminhando e cantando e seguindo a canção.
Cresci sem marca no
braço e a memória do cheiro do bacalhau sempre associada à música do Vandré e a
história da revolta da vacina. Virei uma educadora e uma profissional de saúde; tudo "gente" que já temi e fugi. Meu esforço é não me parecer com um soldado, um
opressor, alguém que vestindo branco ou preto ou verde, não importa, causasse
temor. Nem sempre é fácil. Nem sempre os ideais e as ideias formadas ajudam e
nos resta sempre lutar em verdadeira guerrilha cotidiana.
Já com tempo suficiente para aprender a não
assustar, a não mandar, dei conta do espaço vazio do braço, da ausência da
marca da vacina. Veio a inspiração do pai e das curas e cuidados que se fazem
pela terra, pelas plantas. Veio a árvore de infância que abracei em encontro,
em despedida, em barulho de folha, em sombra frondosa de copa cheirosa. Veio a
simplicidade de um desenho fácil, que contasse uma história ou muitas
histórias.
Folha de mangueira. Depois, descubro que é
sagrada em cultos afro brasileiros. E me encanto mais. Assim, lá está ela, cá
está ela. Verdinha que nem esperança. Subversiva que nem fui, sou. Simples.
Contando de crenças, de tempos, de pai, de esperança de proximidade mais do que
de medo. Folhinha solta no braço pra me lembrar que braço também é galho. Folhinha pra me lembrar de caminhar, cantar e seguir a canção. Canção essa que abraçamos e nos abraça, terna, pendurada no alto da árvore. Alimento de passarinho pronto para voar.
Entendi... e fui testemunha.
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