Maria Amélia Mano
Onde escondeste o verde clarão dos dias?
Onde escondeste a vida
que em teu olhar se apaga mal se acende?
E passamos carregados de
flores sufocadas.
Mas, dentro, no coração, eu sei, a vida bate.
Subterraneamente, a vida bate.
– Ferreira Gullar
Não
se trata do poema e sim do homem, grita Ferreira Gullar. Não se trata da
palavra e sim do grito, da falta de escolha, da falta de escola, da falta de
tempo para a vida. Ela estava lá, sem escolha.
Não
se trata do homem e sim do escravo. Não
se trata da vida, mas da ferida mal curada, mal cuidada, mal sentida por medo
de sentir, de se fazer notar, de se fazer frágil para não mais servir. Ela
servia.
Uma
criança coloca um banquinho para alcançar a pia e poder lavar a louça dos patrões.
Um operário acorda às 5 da manhã para pegar o primeiro ônibus lotado para o
trabalho. Uma mulher com dor carrega caixas e caixas de frutas em um centro de
abastecimento de hortifruti. Mulheres estragam menos frutas do que homens.
Não
se trata do sabor, mas da fome, das ruas, das pontes, das febres, das ilusões
de pedra e pó: fumaça nua, brilho solitário, refúgio de presente, escuridões e
sangue no asfalto. Sangue dela.
Não
se trata de vozes, mas de buzinas, gases, passos, apitos, pulsos, coração e esse
pequeno pão, alimento de esperança, migalha de futuro. Não se trata de canção,
mas de oração. Alguém rezou por ela.
Uma moça grávida, trabalha em caixa de supermercado, resolve não beber
água para não sentir vontade de urinar. Uma balconista de uma loja paga, com o
salário, pelo vidro que acidentalmente quebrou. Uma guardadora de carro é morta
por assaltantes quando enfrenta os que querem roubar um carro que assumiu
cuidar. Foi ontem. Ontem.
Não
se trata. Não se reza. Não se defende quando só se denuncia. Uma história é
preciso ser contada porque são muitas histórias e vozes. É tudo o que se quis
dizer e contar. É tudo o que se sufoca e prende em soluço na garganta.
A
cada dia, alguém humilde que trabalha, que luta, me convence de que a vida dói,
mas a vida bate, em poesia, em generosidade, em paciência, em esperança verde.
O mesmo verde do clarão dos dias, do dia que morre como ela morreu, antes do
mais lindo por de sol no Guaíba. Trabalhando.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O que tem a dizer sobre essa postagem?