11 agosto 2017

ACAMPAMENTOS - FRAMIGMENTOS DE MEMÓRIAS VERDE OLIVA

Imagem capturada na internet, 2017.
Ernande Valentin do Prado
Os acampamentos no exército eram divididos em treinamento e operacionais ou manobras. Nos acampamentos de treinamento o objetivo era se preparar, treinar, aprender e desenvolver ações. Nas manobras simulava-se situações reais, o que era mais tranquilo, pois quando não se estava de serviço, a ordem era descansar e esperar.
No acampamento de teste de resistência, no primeiro dia, Marcão chegou atrasado, só muito depois, quando já estávamos na Serra do Cadeado, foi que ele chegou. Estava com o cantil, vazio. O oficial, mandou que ele fosse até uma poça d’água formada pela chuva, onde o gado matava sua cede, e enchesse o cantil com aquela água barrenta. Ele foi, mas não tinha coragem de encher. De longo o oficial gritava:
- Enche o cantil.
Marcão até se abaixava, fazia o gesto de quem iria pegar a água, mas recuava. De longo o oficial continuava gritando com ele, que indeciso continua fazendo o gesto, mas não o efetivava. Até que finalmente encheu o cantil, quando viu um sargento indo em sua direção.
A Serra do cadeado é uma das regiões mais alta do estado do Paraná, do alto de alguns dos morros fica-se por cima das nuvens. É uma visão espetacular, que tivemos logo no primeiro dia, depois que Marcão encheu o cantil e subimos o morro para exercícios de rapel. É muito fria também, principalmente de madrugada, mas disso não dá nem para reclamar, todo acampamento era frio e chovia.
Uma madrugada, sem mais nem menos, sem nenhum planejamento, um grupo foi tirado da barracada para fazer uma patrulha com o Sargento Mendonça. Subimos até às torres de TV e Rádio. Lá em cima, mais ou menos três horas da manhã, fazia um frio descomunal, soprava um vento constante que cortava a pele. O pior, não fazia nenhum sentido estar ali.
O caminhão, por onde entrava vento por todos os lados, subiu ziguezagueando pelas estradas de terra até chegar quase na altura do céu. Descemos e montamos guarda ao redor do caminhão, na estrada, para impedir que outros veículos subissem, como se houvessem mais algum insano disposto a subir naquela lonjura, àquela hora da manhã.
 Batíamos os queixos, pulávamos de um lado para o outro tentando se aquecer, sem informação nenhuma sobre o que fazíamos ali, com vontade de atirar no sargento, mas a munição era de festim, só servia para fazer barulho. Do meu lado, como se seu coração de gelo fosse mais frio que o clima e o vento, passou o Mendonça, o sargento mais sádico que conheci no exército, que era cheio de sádicos por vocação. Ele olhou para Moreira, de cachecol tampando o rosto todo, luvas, japona verde oliva, batendo o queixo em total desconforto, apenas livre os olhos:
- Tá com frio, soldado?
Moreira, talvez com medo de demonstrar fraqueza, respondeu que não.
- Então tire o cachecol, as luvas e a blusa, soldado.
Sem saída, naquele frio infernal da madrugada, o moleque começa a tirar a roupa. O sargento, repetindo o mesmo gesto, virou-se para eu, escondido do lado do caminhão, tremendo de frio.
- Tá com frio, Prado?
- Tô morrendo de frio, Sargento. E o senhor?
Mendonça não era de falar muito, apenas disse:
- Então vá até aquela torneira e se molhe. Disse apontando uma fonte de água junto a cerca da guarita da torre de tv.
Fiquei parado, sem acreditar naquela resposta nazista, sádica, esperando que fosse brincadeira, mas ele gritou:
- Tá esperando o que, Soldado?
Pensei em me jogar sobre ele, esmurrar aquela cara odiosa, mas não fiz nada. Sai correndo morro acima em direção a torneira. Depois de uns 20 metros, com muita raiva, parei, olhei para trás e gritei:
- Quer que molhe só a cabeça ou o corpo todo, sargento?
Talvez sem esperar aquela reação, o sargento disse:
- Pode deixar, soldado, sua moral tá muito alta...
Neste acampamento, ficamos um longo período sem comer e sem dormir. Depois de quatro dias sem se alimentar, comendo só migalhas que encontrávamos ou recebíamos de soltados antigos: casca de laranja, nestes dias, parecia uma delícia, mas era insuficiente para todos que tinham fome.
Uma noite, como todas, gelada, formos tirados do acampamento vendados, amarrados e jogados na carroceria de um caminhão, uns por cima dos outros. Os soldados gritavam de dor, do mal jeito, do escuro, do desespero de estar naquela situação, apenas ouvindo soldados antigos, cabos e sargentos em volta. O caminhão rodou pelas estadas por um tempo que pareceram horas, fez dezenas de curvas, e até parecia andar em círculos, em alguns momentos. Depois de muito tempo chegamos, era uma mangueira de gado, formos jogados nela, tiram os capuzes, mandaram que tirássemos os cadarços do coturno e deram as informações:
Agora vão receber instruções sobre como torturar para obter informações. Em algum momento vai acontecer um ataque de aliados e vocês devem fugir e voltar para o acampamento. Devem evitar as estradas, vamos fazer rondas pelas estradas e quem for capturado vai voltar para o campo de concentração e ser torturador. Há dozes pontes até chegar no acampamento, mas não podem passar por cima de nenhuma. Quem chegar primeiro poderá comer e dormir o resto da noite. Na estrada vão ver grupos de guardas, com soldados antigos, mas não devem se aproximar deles, estão lá para manter a segurança do perímetro de treinamento.
A primeira coisa que fiz, enquanto assistia o sargento demonstrar em um colega como se torturava, como fazia um pau de arara, como se dava choque e quais os melhores lugares para quebrar o corpo e a moral do torturado, foi arrumar algo para prender o coturno. Estava me preparando para fuga e não tinha como correr sem cadarço. Prendi o coturno o melhor que pude com arame e escondi-me no escuro para não ser lembrado como cobaia de tortura. Mas não houve jeito. Fui chamado para uma demonstração. Não lembro como fui torturado, mas lembro que na hora, ao contrário do que imaginava, a dor era tão grande, que seria impossível resistir, que, em caso de uma tortura real, contaria até o que não sabia. Felizmente, logo no início da tortura, houve o ataque dos aliados e conseguir fugir no meio do tiroteio entre antigões e sargentos.
Corri sozinho pela mata por muito tempo, sem olhar para trás, sem nem ao menos saber em que direção estava indo, que direção era o acampamento. Apenas fugia da tortura e do barulho dos tiros de FAL. Depois de um tempo que pareceu muito grande, correndo o máximo que podia, caindo, levantando, correndo mais ainda, não via ninguém por perto: nem soldados da patrulha, que deveriam me caçar, nem colegas em fuga. Não via a própria estrada, nem a guarnição. Parei exausto, escondi-me no mato, imaginando estar perdido, que todos já tinham chegado no acampamento, menos eu.
Não sei por quanto tempo fiquei ali, mas hoje imagino que não deveria ser muito tempo. Quando recobrei o folego, voltei a caminhar pela mata e encontrei outros dois soldados, tão cansados quanto eu. Eles também haviam perdido a noção do tempo, imaginavam que o dia já ia amanhecer, mas de fato poucos minutos haviam passado entre o aquele e aquele ponto. Vimos luzes, e um jipe percorria um lugar que, até então nem tínhamos visto que era uma estrada. Ele passou, com um oficial, um sargento e um antigão dirigindo. Logo depois saímos na estrada, para nos localizar. Identificamos uma ponte e um posto de controle. Voltamos pela mata e continuamos em frente. O rio era muito extenso, a agua fria, mas tivemos que atravessar sem chamar atenção da guarnição. Do outro lado, pensamos: agora só faltam 11 pontes.
Depois de muito tempo caminhando pela mata, formos encontrando outros solados e sendo encontrados por outros tantos, que imaginávamos que já estivessem muito longe. Não lembro de tudo que aconteceu no percurso, de tudo que sofremos. Há lapsos de memórias: lembro de ver um soldado, Gama, passando correndo por cima da ponte e ele foi o primeiro a chegar no acampamento. Ele passou por cima de todas as pontes, desrespeitando a primeira regra e não foi capturado por ninguém. Lembro de ver um soldado atravessar o arrame farpado, onde nem cerca tinha, de ver vacas pastando e querer tirar leite delas, mas ninguém quis ajudar. Depois descobri que era alucinação provocada pela fome e falta de dormir.
Em um dos pontos de controle reconheci os antigões, eram do tipo gente boa. Eles descascavam laranjas. Nos viram, mas não cumpriram as regras e nos ajudaram, apontaram o caminho do acampamento, nos deram duas laranjas, que descascamos, dividimos os gomos da fruta e a casca, que pareceu uma delícia. Nos dias que seguiram descobri que teve gente que comeu cascas de laranja, de banana, cogumelos e tudo mais que arrumou no caminho.
Quando cheguei no acampamento, arrastando-me, o dia ainda não tinha amanhecido totalmente, mas já começava a clarear. No rancho, ainda vi o zero 01 da fuga, tomando chocolate quente e comendo pão com manteiga. Ele chegara muito tempo antes, mas forte do jeito que era, não parecia cansado, nem havia ido dormir, continuo ali comendo. Minha colocação não lembro, mas disseram que não fora ruim comparando ao número de soldados no exercício, sobrou apenas um frasco de caro, um tipo de mel de milho ou coisa assim. Comi aquilo como se fosse gostoso e senti-me mais forte. Não tinha leite, mas ainda arrumaram meio pão francês. Depois me encaminharam para uma barraca e deixaram-me dormir por um tempo que pareceu horas seguidas, mas depois descobri que foram menos de 30 minutos.
No último dia de acampamento, com toda tropa faminta, montaram uma fogueira as margens de um riacho. Colocaram uma enorme panela em cima e começaram a preparar uma sopa horrível, com tudo que tinha na mão: carne de galinha, penas, farinha, arroz, mel e tudo que sobrara do rancho. Quando terminaram o cozimento, chamaram alguns soldados para experimentar. Marcão, por ter perdido a alça do cantil, que servia de caneca e prato, foi servido em seu coturno, todo enlameado.
Encheram o coturno e diziam:
- Bebe, soldado.
Ele ameava beber, mas não tinha coragem, como no gesto de encher o cantil, mas por fim, depois de muito ameaça e, talvez pela fome, bebeu. Outros soldados beberam sem insistência, talvez porque na fome tudo é aceitável.
Depois disso, jogaram coelhos e galinhas no rio e disseram:
- Quem conseguir pegar, pode comer.
O frio era tanto, tão cortante e mais desesperador que a fome, que não tive coragem de me jogar no rio, como outros fizeram. Eu disse, vou acender o fogo, para assar o bicho. Ninguém questionou. Fiz o fogo, trouxeram um coelho e uma galinha, comecei a assar, mas ninguém teve muita paciência para, comemos quase cru os bichinhos.

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]


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