Maria Amélia Mano
Aprendi a ler com os quadrinhos.
Nunca gostei dos livrinhos infantis. As aventuras de Tio Patinhas pelo mundo
eram mais sedutoras que os personagens de vida curta e histórias sem muita
emoção. Veio a Coleção Vaga Lume da Ática. Mas o principal eram os livros didáticos
de português com suas “lições”. As lições eram textos que representavam uma
unidade com exercícios. Os textos eram fragmentos de livros, partes de uma
história que era maior, sabia eu.
Memórias de Um Cabo de Vassoura e Meu
Pé de Laranja Lima eram as mais famosas histórias. Das poesias, Cecília
Meireles era a maioral: Ou Isto Ou Aquilo, As Meninas, Leilão de Jardim, O
Menino Azul. Tudo especial demais! Copiava as poesias, todas. E ia na
biblioteca para fuçar os livros didáticos, as lições, as tais pequenas partes.
Assim foi que peguei gosto pela leitura, de modo meio estranho: pelos
quadrinhos e pelos fragmentos.
Assim que aprendi que escrever também
era instrumento de luta e denúncia. Que poetas podiam escrever por uma causa,
além do amor, além da natureza, além das coisas lindas da vida. E foi ele, o
condoreiro, que me apresentou uma luta em poesia. E ele era lindo e era jovem e
era apaixonado. Era difícil ler o que escrevia, entender a construção que fazia
e mesmo algumas palavras que usava. Mas, sim, Castro Alves foi o primeiro poeta
que admirei para além da poesia.
Entrei no Navio Negreiro e quase
sentia todo o sofrimento que descrevia. O barulho dos chicotes e dos gemidos era
real. Conseguia enxergar, na penumbra, os homens e mulheres acorrentados. Não
entendia como alguém tão especial que escrevia daquela forma, que diziam,
declamava com energia e força, poderia ter morrido aos 24 anos. Quase entrando
na adolescência, entendia o sentido de paixão para além do amor romântico, mas
por uma crença, uma justiça, por seres humanos.
Muitos poetas vieram fazer seu ninho no
meu coração e na minha estante. Muitas palavras me encantaram, sim, e me
ensinaram mais. Mas, hoje, nem sem porque, ou talvez saiba, lembrei desse meu
encantamento por Castro Alves. Menino bonito e apaixonado. Estamos em um tempo
de vozes ainda em açoite, violências por diferenças de cor, ainda, sim. Leio
poesia, escuto as vozes em canções negras e reverencio deuses miscigenados
vindos de rios e mares, natureza.
Natureza é tempestade. Há um farol no
litoral sul buscando sete pescadores que sumiram desde a última ressaca desse
mar que é encantamento e armadilha, brincadeira e barco de fuga de imigrantes.
Pescadores, devem ser quase todos negros, como os que fogem das guerras, como
os que temem as tochas neonazistas dos norte-americanos da Virgínia, como os
que vieram acorrentados nos porões dos navios negreiros. Uma história que não
acabou.
Castro Alves queria fechar as portas
dos mares que permitiam o tráfico de escravos. Melhor seria abrir coração. Mas
isso custa. Por agora, navega minha, nossa balsa, pequena com luz de sonho e
esperança. Feita de muitos retalhos como o nascimento do meu gosto pela poesia.
Feita de tantos pedaços encantados que nessas horas de tempestade e perda, trazem
o carinho da memória, da confissão, da paixão, da luta. Balsa é condoreira,
também.
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