15 agosto 2017

FECHA A PORTA DOS TEUS MARES!


Maria Amélia Mano

Aprendi a ler com os quadrinhos. Nunca gostei dos livrinhos infantis. As aventuras de Tio Patinhas pelo mundo eram mais sedutoras que os personagens de vida curta e histórias sem muita emoção. Veio a Coleção Vaga Lume da Ática. Mas o principal eram os livros didáticos de português com suas “lições”. As lições eram textos que representavam uma unidade com exercícios. Os textos eram fragmentos de livros, partes de uma história que era maior, sabia eu.

Memórias de Um Cabo de Vassoura e Meu Pé de Laranja Lima eram as mais famosas histórias. Das poesias, Cecília Meireles era a maioral: Ou Isto Ou Aquilo, As Meninas, Leilão de Jardim, O Menino Azul. Tudo especial demais! Copiava as poesias, todas. E ia na biblioteca para fuçar os livros didáticos, as lições, as tais pequenas partes. Assim foi que peguei gosto pela leitura, de modo meio estranho: pelos quadrinhos e pelos fragmentos.

Assim que aprendi que escrever também era instrumento de luta e denúncia. Que poetas podiam escrever por uma causa, além do amor, além da natureza, além das coisas lindas da vida. E foi ele, o condoreiro, que me apresentou uma luta em poesia. E ele era lindo e era jovem e era apaixonado. Era difícil ler o que escrevia, entender a construção que fazia e mesmo algumas palavras que usava. Mas, sim, Castro Alves foi o primeiro poeta que admirei para além da poesia.

Entrei no Navio Negreiro e quase sentia todo o sofrimento que descrevia. O barulho dos chicotes e dos gemidos era real. Conseguia enxergar, na penumbra, os homens e mulheres acorrentados. Não entendia como alguém tão especial que escrevia daquela forma, que diziam, declamava com energia e força, poderia ter morrido aos 24 anos. Quase entrando na adolescência, entendia o sentido de paixão para além do amor romântico, mas por uma crença, uma justiça, por seres humanos.

Muitos poetas vieram fazer seu ninho no meu coração e na minha estante. Muitas palavras me encantaram, sim, e me ensinaram mais. Mas, hoje, nem sem porque, ou talvez saiba, lembrei desse meu encantamento por Castro Alves. Menino bonito e apaixonado. Estamos em um tempo de vozes ainda em açoite, violências por diferenças de cor, ainda, sim. Leio poesia, escuto as vozes em canções negras e reverencio deuses miscigenados vindos de rios e mares, natureza.

Natureza é tempestade. Há um farol no litoral sul buscando sete pescadores que sumiram desde a última ressaca desse mar que é encantamento e armadilha, brincadeira e barco de fuga de imigrantes. Pescadores, devem ser quase todos negros, como os que fogem das guerras, como os que temem as tochas neonazistas dos norte-americanos da Virgínia, como os que vieram acorrentados nos porões dos navios negreiros. Uma história que não acabou.

Castro Alves queria fechar as portas dos mares que permitiam o tráfico de escravos. Melhor seria abrir coração. Mas isso custa. Por agora, navega minha, nossa balsa, pequena com luz de sonho e esperança. Feita de muitos retalhos como o nascimento do meu gosto pela poesia. Feita de tantos pedaços encantados que nessas horas de tempestade e perda, trazem o carinho da memória, da confissão, da paixão, da luta. Balsa é condoreira, também. 

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