03 outubro 2017

CENTRO


Maria Amélia Mano

       Inhotim: em um pavilhão em círculo, no alto de uma colina, há um poço tubular de 202 metros de profundidade. No ponto mais baixo, no centro, oito microfones de cristal e equipamento de amplificação captam o som da terra. Música sem partitura, som de rios subterrâneos, trepidar de rochas, notas que não se repetem, mistérios das entranhas do chão. Dizem que o artista plástico que o criou fez experimentos com os ruídos da selva e das erupções vulcânicas. Às vezes o som é calmo e às vezes, furioso, como a natureza. É como gramofone mágico de vertentes. Vertentes, tentes ver, tentamos ver e ouvir. Só ouvir.

Gramofone, megafone, cone. Cilindro que afunila para o centro. Ângulo agudo, vértices, viadutos, vias. Vários deles, cor de laranja delimitando a obra na Castelo Branco. Congestionamento e congestão, retorno e refluxo. Conversão à direita. O maltrapilho emagrecido atravessa a Farrapos com as calças caindo. Senhoras que esperam o ônibus se constrangem. Na Praça Parobé, homens e mulheres dormem. Um deles faz horta em copos descartáveis. Lavoura imaginária depositada em coluna de concreto do terminal. Com vista para o Mercado Público, ele rega os brotos, cuida do verde. Ouve o verde.

            Em dezembro, uma família que mora na passarela da rodoviária faz árvore de natal. Em loja de tirar xerox da Salgado Filho, mulher já com muitas rugas no rosto imprime currículo e pergunta onde fica a agência de empregos populares do centro. Um homem passa em frente a uma obra na Uruguai e pergunta ao trabalhador se tem vaga. Não tem. Homem negro de verdade vende coisas coloridas e falsas e um pregador atravessa a Andradas gritando com a bíblia na mão. Há um pedaço de espelho entre os que dormem no viaduto Otávio Rocha, na Borges. Alguém ainda se olha. Ainda se olha.

            Amplificadores de Inhotim causam comoção pela natureza escondida. Explícita e nua, na rua, desfila a natureza humana e desumana. É Porto Alegre, mas poderia ser outra selva onde o desprezível, o desarranjo, o desemprego, o desespero é grito e silêncio. Buzina, freada brusca, colisão, confusão e sangue no asfalto. Engarrafamento na Mauá e vida que termina, moto caída, ambulância, luzes e tentativa de reanimação. Senhora da loja de flores de plástico da Voluntário da Pátria pensa no filho da mesma idade e chora. Ela ouviu o grito, o som do centro da terra. Não deu tempo de colocar os cones laranja. Não deu tempo.            

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