17 outubro 2017

ESTELA E O TAMBOR


Maria Amélia Mano

Se me perguntares
Quem sou eu
Com essa cara
Cavada de bexigas de maldade
Com sinistro sorriso

Nada te direi
Nada te direi

Mostrar-te-ei as cicatrizes de séculos
Que sulcam minhas costas negras
Olhar-te-ei com olhos de ódio
Vermelhos de sangue vertido durante séculos
Mostrar-te-ei minha palhota de capim
A cair sem reparação
Levar-te-ei às plantações
Onde sol a sol
Me encontro dobrado sobre o solo
Enquanto trabalho árduo
Mastiga meu tempo

Levar-te-ei aos campos cheios de gente
Onde gente respira miséria em toda a hora

Nada te direi
Mostrar-te-ei somente isto
E depois
Mostrar-te-ei os corpos do meu Povo
Tombados por metralhas traiçoeiras,
Palhotas queimadas por gente tua

Nada te direi
E saberás por que luto

Armando Guebuza


Coletivo atravessando a periferia: Avenida Bernardino Silveira Amorim. Tempo de uma hora. Menina negra em céu cinza com promessa de chuva que não se cumpre. Seu nome é Estela e tem o cabelo crespo erguido, solto no alto da cabeça, tal qual Deusa africana. Retira da bolsa o livro do Lázaro Ramos, Na minha Pele.

É minha parada e desço do ônibus. Mas desço feliz pela beleza de Estela e o livro, e a pele, e o orgulho com que se movimenta, respira. Penso no tempo entre o navio negreiro e a vaidade de Estela. Penso no tempo entre o silêncio, o cárcere e o grito, a liberdade, ainda que sob suspeita, ainda que com luta, ainda que a caminho.

Em outro lado do mundo, um furacão com nome de mulher ameaça. Há um terremoto no México. Ainda somos pequenos, muito pequenos. Menores que a natureza que pensamos dominar. Mas enquanto em um lugar, todos se preparam. Em outros, há devastação. Um desastre da natureza não é só da natureza, é dos homens.

Escândalos de corrupção e um tanto de dinheiro tão grande que poderia criar mil bibliotecas para meninas como Estela. Poderia fazer mil abrigos para populações vulneráveis. Noticiários que não quero mais ver. Fim de semana que espero para descansar, para ouvir, tambores...

Sim, eles ressoam, eles perdoam, pedem passagem. A menina do meu caminho do trabalho volta, no meu sábado, volta. E volto à menina que lê a cor da pele que tem, Estela, sempre presente, sempre um presente, nas saias rodadas, no olhar de tantos navios, de tantas lágrimas distantes, de correntes, de sorriso que canta e dança.

A semana recomeça. Amanhã, como ontem, elas estarão lá, no meu trabalho ou no meu descanso, estarão. Estelas, todas, tocando tambores pelas avenidas, pelos coletivos, pelas paradas, pelos caminhos, pelos ofícios difíceis, pelo cotidiano de luta, pela luta por dignidade. Todas, me dizendo o que preciso escrever, o que está escrito nos olhos delas. Estelas. Estrelas.

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