Maria Amélia Mano
Chamava-se Pingo, mas para o pai era
sempre o cachorro, o pulguento ou o fedorento. O bichinho era mal humorado, mordia os calcanhares de
quem não gostava, nunca aprendeu a fazer xixi no lugar certo e fedia mesmo com
banhos frequentes. Esse cachorro ainda vai acabar comigo, dizia o pai, a
cada vez que Pingo destruía algum objeto ou planta.
O filhote com 20 dias chegou
em transição das filhas da infância para a adolescência, em momento de cidade e
escola nova, quintal pequeno, pouco lazer. As meninas, de idades próximas,
inventavam tudo que podiam e a imaginação transformava Pingo em filho, cavalo
de carregar carruagens ou abrigar cavaleiros. Ele estava em todas as
brincadeiras. Cachorro enxerido, dizia o pai.
Apesar de ser rabugento e anti-social,
Pingo se adaptou a várias mudanças da família, de casa e cidade. Tomou banho de
mar, de poço, correu atrás de jegue e moto e de sapos reais e imaginários.
Andou em caminhão de mudança. Morou em apartamento, sítio, cidade do Nordeste e
do Sul. Sempre em brigas com o pai. Na verdade, eram parecidos em gênio. O
que o pai negava sempre com irritação.
Tempo que corre e as meninas
começaram a namorar e, obviamente, nenhum namorado era aceito pelo pulguento. Tampouco a independência
crescente delas agradava ao pai e ao Pingo. Assim, pela primeira vez, ambos precisavam
reconhecer que estavam do mesmo lado. Aos poucos, uma a uma, as meninas,
agora mulheres, foram saindo de casa para estudar, casar, fazerem suas vidas.
Pingo foi perdendo a bravura
e o agudo do latido, assim como a pontaria para os calcanhares. Com 15 anos, caiu
desfalecido. Pai tentou reanimar com as manobras que via nos filmes. Não teve
jeito. O pulguento foi para o limbo
dos cachorros e a casa ficou mais silenciosa e vazia. A surpresa foi o choro do
pai que fez questão de enterrar o bichinho no quintal, debaixo de um limoeiro
que plantou.
Tempos depois, eu, a menina
mais velha, perguntei ao pai sobre o Pingo, sobre a tristeza que ele ficou
quando o pequinês insuportável se foi. Logo ele que brigou
tanto com o cãozinho. O pai baixou a cabeça e disse que a morte do Pingo foi a
certeza de que a nossa infância tinha passado e que o fedorento era o último sinal de nós três, pequenas, em casa. Nós,
todos juntos.
Mostra o limoeiro no
quintal, com carinho: ele está ali. Conta
como tentou reanimar, como quem tem esperança. Como plantou o
corpinho, como ritual de passagem, com cuidado, como se plantasse todo um tempo
mágico. Como se despediu, com saudade de uma fase das nossas vidas que já tinha
ido. Ao fim, com o humor de sempre, o pai sorri e confessa: no fundo,
éramos muito parecidos...
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O que tem a dizer sobre essa postagem?