Maria Amélia Mano
*
O passar do tempo deve
sempre nos surpreender para o bem. Isso não é simples quando há perdas próprias
da idade, como a tal da vista curta. Se,
por um lado, sei que hoje eu vejo muito
mais, parodiando Belchior, por outro, cheguei ao tempo dos óculos bifocais.
Opção para lentes de contato: um olho com correção pra perto e um olho com
correção pra longe. No início é confuso, diz a oftalmologista, mas com o tempo,
o cérebro assimila. Como se perto e longe se misturassem e formassem uma imagem
única. Desafio maior mesmo é sempre mudar o significado do olhar de dentro.
Primeira
semana de uso das tais lentes e era preciso fechar um dos olhos para enxergar
melhor, conforme a distância do objeto. Passava piscando, o que parecia um
tique nervoso ou um flerte constante. Isso não me causou incômodo. O legal de
passar dos 40 anos é a pouca importância para a opinião alheia, o que bem poderíamos
adquirir mais jovens, assim como a esperança na adaptação. Paciência é presente
do tempo. Nosso cérebro já enfrentou outros tantos limites, esperas e distâncias.
Perto e longe é, sempre foi e será só uma questão de ajuste do olhar, assim
como quase todas as contradições.
Antes
da adaptação, as surpresas que duraram mais uma semana. Por segundos, na
leitura imediata, eu fazia trocas ou acrescentava letras o que mudava a palavra.
Assim, Marx falava de uma mais-vadia e a Coréia lançava uma bomba atônita. Meliantes
com escolta amada e academia com personal trailer e aulas de jazz, nível incendiário.
No texto sobre educação espacial, a referência aos cegos, surdos e mundos. Palavras
novas surgiam: cantálogo e desperdida são só algumas, filhas de bagunça óptica.
Pequenas trapaças ou piadas de um cérebro aprendiz que me inspirava como jogo
de caça palavras, palavras cruzadas ou uma forca inusitada.
Como ser piscante que flertava
com todos, eu tive uma certeza: meu olhar ficou mais criativo e revolucionário
que nunca! Aprendi que uma vista curta pode ser um ver além e uma vista equivocada pode ser mais
gostosa e poética. Então, vamos (nos) aproveitar dos nossos supostos erros e
desse nosso olhar desadaptado, seja pelas lentes, seja pelo caos do mundo que
nos assombra. Quem sabe, daí, pode nascer a palavra que não existe e encanta.
Pode nascer a história de fazer rir os amigos. Pode nascer até a gente de novo,
cheio de alecria e esmerança. Afinal, parodiando o principezinho, o essencial é
imprevisível aos olhos e tudo na vida é jogo de adivinhação. E que o olhar
nunca envelheça e sempre nos surpreenda.
* Texto que faz parte da publicação: Santa Sede - Crônicas de Botequim - safra 2017
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