20 outubro 2017

5 REGRAS - DEZ HISTÓRIAS SOBRE A INTERNAÇÃO DA MENINA DE OLHOS AMARELOS

Casa com portão. Alice, 2017.
Ernande Valentin do Prado

A menina dos olhos amarelos ficou os três primeiros dias quase sem comer. Não era ruim o que serviam, nem tão diferente quanto a comida de casa: arroz, macarrão, carne, purê de batatas, uma fruta de sobremesa. No entanto, a menina não comia. Não era a comida da mãe, além disso era obrigada a comer de colher, que não usava em casa, sem falar que já chegava gelada em seu quarto. 
- Pai, eu não cômo comida fria, você sabe.
- Sei...
Disse. Nem eu comeria, pensa o pai, mas imediatamente tenta justificar a comida chegar gelada, afinal de contas ela precisava comer. Comendo já não era fácil se recuperar, sem comer...
Como ingerir um alimento que não parecia agradável, ainda sem apetite, com náuseas, coceiras e a fraqueza, que a bilirrubina tão alta provocava.
- A senhora tem um garfo?
Pergunta o pai, para a copeira que entregava o almoço naquele dia. Ela lhe olha como se ele estivesse perguntando: você tem um revolver?
- Pai, é proibido entrar garfo no hospital.
- A copeira de ontem me deu um garfo?
- Impossível, pai, nem tem garfo no hospital...
Disse a mulher e virou as costas, deixando claro que não queria conversar e não dando margem para argumentos, tanto que o homem achou que talvez estivesse mesmo delirando. Quando entrou perguntou para filha se, no dia anterior, comeu mesmo de garfo?
- Pai...
Fala a filha, aquela de olhos amarelos, que apesar de tudo parecia se divertir ou zombar das regras:
- ... por que não pode entrar garfo no hospital?
Não sei, disse o pai, ainda sem entender a fala da copeira. E acrescenta, para não perder a oportunidade de fazer uma piada:
- Acho que deve ser como em presidio, minha filha, têm medo da gente usar o garfo como arma.
Quando a nutricionista entrou no quarto, naquele terceiro dia, o pai estava sentado e permaneceu sentado. A mãe, ainda não tinha ido para casa, estava em pé ao lado da cama. A nutricionista perguntou: o que ela gosta de comer? O pai disse que outra pessoa já tinha anotado o que ela comia. A mãe, um pouco mais paciente contou, de novo, o que a menina gostava de comer, apesar de concordar que seria bom que os profissionais olhassem as anotações já feitas.
O pai ficou pensando: é muito desagradável responder a mesma pergunta várias vezes, para várias pessoas diferentes e até para a mesma pessoa. Por que anotam, se não vão olhar? O homem sentado na poltrona pensou que aquela conversa não tinha sentido, uma vez que logo depois de ouvir ou de fazer de conta que ouvia, diriam: não tem, não pode, não deve.
Ao invés de insistir em um assunto de faz de conta, acrescentou problemas que imaginou serem mais fáceis de resolver, como o fato da comida chegar gelada, a falta de garfo e perguntou se poderia trazer de casa alguma coisa que ela pudesse ir comendo nos intervalos entre as refeições. A mulher, sem deixar de olhar para prancheta em sua frente, apenas disse: não. Um não sonoro e definitivo.
O pai não sabia que cara tinha aquela mulher, já que usava uma máscara cobrindo o rosto. Ficou imaginando que se tratava de uma carrasca, ou uma atiradora de elite. Nos filmes essa gente não mostra o rosto, assim evitam represália. Também, por estar com a cara escondida, não precisa fingir empatia.
O pai insistiu, alegou que ela não estava comendo e enfatizou os hábitos de vida, a dificuldades de uma criança de nove anos assimilar as regras do hospital em tão pouco tempo. A Nutricionista deixou de olhar para a prancheta, pela primeira vez. Lentamente erguei a cabeça e dirigiu o olhar para o homem sentando, como quem olhava para alguém que não sabe o que diz e que precisava de explicação para o obvio:
- Pai...
Pausou a fala com efeito teatral, respirou, talvez contendo um profundo desgosto por ter sua autoridade questionada, ou seu saber científico julgado por um simples e ignorante pai. Finalmente disse, como quem cuspe em cima de alguém que lhe ofendeu, como último recurso:
- ... hospital tem regras...
O homem, pensou, embora não tenha dito: não sou seu pai e interrompeu a fala da mulher antes da conclusão:
- A senhora está dizendo que mais importante do que minha filha comer é ela comer o que a senhora quer e na hora que a senhora quer?
- Hospital tem regras, pai, acha que dá para abrir exceção para todo mundo, ia virar uma baderna...
- Só responde uma coisa...
Disse o homem, já pronto para estourar, mas em voz baixa. Não se levantou para não parecer ameaçador, mas a mulher de meia idade, com rugas nos olhos, cabelo amarrados tipo rabo de cavalo, percebeu.
 - ... respeitar as regras do hospital é mais importante do que comer?
- É sim.
Disse a mulher, convicta.
Apesar de tudo, o homem ficou satisfeito, afinal de contas era a primeira demonstração de que ela estava lhe ouvindo e lhe respondeu a pergunta, sem rodeios:
- Então não tenho mais nada para falar com a senhora.
Disse o homem, já sem paciência.
- ...tantos anos de faculdade para dizer uma besteira dessa. 
Ficou pensando:
- ... será que ter nutricionista no hospital melhorou o atendimento aos doentes ou só arrumou emprega para mais profissionais?
A nutricionista se ofendeu com o homem sentenciando sua pouca efetividades diante das necessidades da filha. Acrescentou:
- As regras são essas, se não está satisfeito pode procurar outro hospital.
Se essa mulher se ofendeu com o que eu disse, nem quero imaginar o que ela faria se pudesse ouvir o que pensei. Não disse nada sobre o que estava pensando, apenas levantou-se, foi até a mulher, disse:
- A senhora acha que está certo me dizer isso?
Ela recuou um passo e disse:
- Está certo sim, se acha que aqui não está bom, leve sua filha para outro hospital.
O homem levou a mão ao bolso de trás da calça e tirou o celular e acrescentou:
- Então repete para eu gravar sua fala, já que está certa, não tem problema, não é verdade?
A mulher virou-se bruscamente e saiu do quarto resmungando, de dentro do quarto o homem, a esposa e a filha ainda ouviram os resmungos e a nítida frase:
- Neste quarto eu não entro mais.
Até que enfim uma boa notícia, pensou o homem olhando para esposa.


[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

Partes já publicadas:

4 O Cerco        

Partes a publicar:
        
6 Respeito 
7 Comunicação Perfeita         
8 Cuidada 
9 Contrabando     
10 Brinquedoteca

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