Maria Amélia Mano
Perdido projétil, perdida bala,
zunindo, voando, atravessa festa, funk, facções, fardas e fresta de barraco.
Espaço entre tábuas, invade, por trás, aquela protuberância do pescoço de
Joana, invade. O pedacinho de corpo que João gostava de chamar cangote, que
gostava de cheirar, como bichinho que reconhece o par, o beijo. Que bichinhos
somos, cheios de cheiros e medos, instantes e saudade.
Joana na cozinha faz feijão, seu
maior orgulho, receita que é segredo. Joana é da cor da panela de barro, do
grão e do caldo que faz grosso tal qual suas mãos esculpidas em calos de
cozinheira. Ergue colher de pau para provar porção. Ouve som de festa e ruído,
estrondo que nem tem tempo de pensar. Depois, dor fina. Depois, peso imenso.
Depois, leveza e paz em nuvem dourada.
Ainda sem saber que se foi, Joana
se vê pequenina. Joana subindo na goiabeira, Joana correndo no quintal, Joana
se despedindo do pai sonhador que prometia riqueza. Joana esperando o pai,
Joana chorando o pai sumido em garimpo distante. Joana graúda e faceira na
parada de Sete de Setembro segurando bandeira. João na banda da escola errando
batida no tarol por causa da saia de Joana.
Foi há um segundo. João e o cheiro
no cangote. O encontro atrás da igreja e na praça, depois da missa. Os
sussurros e a respiração rápida, o pecado. O elogio ao caldo de feijão de Joana
que se negava a contar o segredo da receita, do sabor, do amor que era grande.
Que tolice os separou? Tolice tão tola de teimosia que nem sabe o tanto, o
quanto, o quando e o como. Não lembra. Assim é tolice.
Joana vê seus três partos, três
cordões cortados, três bocas nos seios fartos, três crias, cada uma com seu cheiro
e cuidado. Filhos de Pedro que se perdeu na bebida. E se vê adormecida, imensa.
Branca como quis um dia ser para ter vida mais fácil. Ilha alva em mar
vermelho. Homens à sua volta, pequenos, medrosos. No chão, ainda segura a
colher de pau com o feijão para sentir gosto. Alguém desligou a boca do fogão.
Alguém apagou a chama. Alguém chama seu nome.
A voz vem de perto. Joana vê homem
entre nuvem dourada. É o pai, sorrindo. Pai que volta de garimpo, cheio de
promessa e esperança. Tinha certeza que voltaria, um dia. Em único abraço,
Joana sente o mundo, a morte menor que a última porção que não provou, a vida
maior que sua panela de barro, o tempo em uma fresta, um instante. Que vida é
feita de tempero de instantes, tolices e sopros. Que tolices separam pessoas. E
sopro espalha semente no ar, junta com terra, brota outra planta.
Planta de prédio na mão, João,
pedreiro, na obra. Sente sopro, brisa, beijo e oco no peito e tristeza dessas
de chorar sem saber porquê. No soluço de João, nuvem dourada, sopro no ouvido,
invade, revela, acalma. Em paz, João sorri e avisa aos parceiros, homens
cinzentos de cimento e cansaço, que hoje, hoje ia ter boia boa. Ia fazer
feijão, feijão de instante, cangote e saudade, feijão com caldo grosso, escuro
como a pele de alguém que amou.
O feijão mais gostoso que podia
existir porque, sim, João já sabia do cheiro e do sabor, o segredo sussurrado
em vento leve e pó dourado.
Ilustração: Adrian Gomez
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