02 janeiro 2018

TODAS NÓS


Maria Amélia Mano

Um dia, visitei quilombo nas terras de Zumbi. Cada passo era mágico porque todos os mestiços, nascemos com alguma marca, alguma memória dessa dor ancestral. Dor de uma colonização feita pelo ventre, pelas violações. Tento encontrar rastros dessas mulheres em mim. Que células, que heranças, que fortalezas, que inspirações me deixaram? Como nunca saberei por suas vozes, invento as histórias delas, de todas as que vieram antes de mim.

Muanza, que significa mar, foi a primeira a pisar nessas terras. Chegou de Angola pelo Navio Feliz Destino em Recife. Trabalhava nos engenhos de açúcar e aprendeu a manejar o pilão em doces e fubás. Apesar da doçura, Muanza era feita de silêncios. Achava que assim podia esquecer das dores. E entre silêncios, castigos e saudades, Muanza morreu aos 30 anos de banzo.

De pele mais clara, a filha de Muanza, Nuni, que significa pássaro, cantava e dançava seus deuses, mantinha seu sagrado e suas ervas. A primeira a cantar sem medo, Nuni foi trocada por um boi e mantimentos e foi para uma fazenda no Ceará. Trabalhou em lavouras de algodão e conheceu a seca. Aprendeu a fiar e costurar mas mantinha a tradição das bonecas abayomi, feitas de nós e lembranças. A filha de Nuni, Kieze, que significa alegria, já foi gerada com promessa de liberdade.

Kieze, a primeira mulher livre, fazia o mais saboroso bolo de milho: tempero de sorrisos. Com o companheiro que sabia os segredos das florestas, Kieze teve Iandê que, em tupi-guarani, significa nós, primeira pessoa do plural. Nós como nós todas, todas nós, negras, índias e brancas. Iandê sabia histórias das matas e seduzia abelhas, cultivava mel. Casou-se com um vaqueiro e cantador que sabia de ervas e chás. Iandê foi a primeira a amar de verdade e a sentir prazer.

Maria, nascida de Iandê, era devota de Nossa Senhora e esqueceu dos deuses e canções de Nuni. A mais clara das mulheres, Maria foi a primeira que aprendeu a assinar o nome com o carvão do fogão a lenha, entre coronéis, carências, cangaços e cangalhas de jegues. Teve onze filhos, criou oito e sete ganharam mundo: partiram para os muitos cantos do país em busca de oportunidades. Porque teve gripe espanhola, meu pai, filho de Maria, mamou em ama de leite negra. No Sul, encontrou minha mãe. Com histórias mais contadas, a família da minha mãe também teve uma primeira mulher que chegou em navio. Mulher com língua e etnia misteriosa.

Lembrando de Muanza é que não silencio e muito viajo para reencontrar os que sinto falta. Sei que a minha linhagem não é de estirpe, é da linha do algodão tosco que Nuni fiou enquanto cantava seus deuses escondidos. Fechando os olhos quando saboreio um bolo de milho, percebo a alegria de Kieze e nas caminhadas nas matas, banhos de cachoeira e no mel dos amores sentidos, está Iandê.

Poderia dizer que escrevo pela avó Maria, a primeira que aprendeu a assinar o nome, mas escrevo por todas nós. Pela primeira que aqui pisou e morreu de saudade. Pela primeira que cantou. Pela primeira que foi livre. Pela primeira que amou. Pela primeira que esqueceu. Também pelas que não contei, matriarcas fortes que lavavam roupa em arroio no inverno de uma fronteira sul, mulheres que perderam filhos em inúteis guerras de homens. Como percebê-las em mim? Como conservá-las em mim? Como nunca saberei por suas vozes, invento as histórias delas, de todas as que vieram antes de mim.

Ilustração: Adrian Galvez

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