Maria Amélia Mano
Um dia, visitei quilombo nas
terras de Zumbi. Cada passo era mágico porque todos os mestiços, nascemos com
alguma marca, alguma memória dessa dor ancestral. Dor de uma colonização feita
pelo ventre, pelas violações. Tento encontrar rastros dessas mulheres em mim.
Que células, que heranças, que
fortalezas, que inspirações me deixaram? Como nunca saberei por suas vozes,
invento as histórias delas, de todas as que vieram antes de mim.
Muanza,
que significa mar, foi a primeira a pisar nessas terras. Chegou de Angola pelo
Navio Feliz Destino em Recife. Trabalhava nos engenhos de açúcar e aprendeu a
manejar o pilão em doces e fubás. Apesar da doçura, Muanza era feita de
silêncios. Achava que assim podia esquecer das dores. E entre silêncios, castigos e saudades,
Muanza morreu aos 30 anos de banzo.
De pele mais clara, a filha de
Muanza, Nuni, que significa pássaro, cantava e
dançava seus deuses, mantinha seu sagrado e suas ervas. A primeira a cantar sem
medo, Nuni foi
trocada por um boi e mantimentos e foi para uma fazenda no Ceará. Trabalhou em
lavouras de algodão e conheceu a seca. Aprendeu a fiar e costurar mas mantinha
a tradição das bonecas abayomi, feitas de nós e lembranças. A filha de Nuni,
Kieze, que significa alegria, já foi gerada com promessa de liberdade.
Kieze, a primeira
mulher livre, fazia o mais saboroso bolo de milho: tempero de sorrisos. Com o
companheiro que sabia os segredos das florestas, Kieze teve Iandê que, em
tupi-guarani, significa nós, primeira pessoa do plural. Nós como nós todas, todas
nós, negras, índias e brancas. Iandê sabia histórias das matas e seduzia abelhas,
cultivava mel. Casou-se com um vaqueiro e cantador que sabia de ervas e chás.
Iandê foi a primeira a amar de verdade e a sentir prazer.
Maria, nascida de
Iandê, era devota de Nossa Senhora e esqueceu dos deuses e canções de Nuni. A
mais clara das mulheres, Maria foi a primeira que aprendeu a assinar o nome com
o carvão do fogão a lenha, entre coronéis, carências, cangaços e cangalhas de
jegues. Teve onze filhos, criou oito e sete ganharam mundo: partiram para os
muitos cantos do país em busca de oportunidades. Porque teve gripe espanhola,
meu pai, filho de Maria, mamou em ama de leite negra. No Sul, encontrou minha
mãe. Com histórias mais contadas, a família da minha mãe também teve uma primeira
mulher que chegou em navio. Mulher com língua e etnia misteriosa.
Lembrando de Muanza
é que não silencio e muito viajo para reencontrar os que sinto falta. Sei que a
minha linhagem não é de estirpe, é da linha do algodão tosco que Nuni fiou
enquanto cantava seus deuses escondidos. Fechando os olhos quando saboreio um
bolo de milho, percebo a alegria de Kieze e nas caminhadas nas matas, banhos de
cachoeira e no mel dos amores sentidos, está Iandê.
Poderia dizer que
escrevo pela avó Maria, a primeira que aprendeu a assinar o nome, mas escrevo
por todas nós. Pela primeira que aqui pisou e morreu de saudade. Pela primeira
que cantou. Pela primeira que foi livre. Pela primeira que amou. Pela primeira
que esqueceu. Também pelas que não contei, matriarcas fortes que lavavam roupa
em arroio no inverno de uma fronteira sul, mulheres que perderam filhos em inúteis
guerras de homens. Como percebê-las em mim? Como conservá-las em
mim? Como nunca saberei por suas vozes, invento as histórias delas, de todas as
que vieram antes de mim.
Ilustração: Adrian Galvez
Ilustração: Adrian Galvez
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