Maria Amélia Mano
Anos em dois empregos,
economias e fundo de garantia, tudo aplicado em singelos e sonhados 42 metros
quadrados: meu primeiro apartamento em um predinho antigo e simpático. Energia
boa, ensolarado, luz direta em todas as quatro fantásticas peças. Duas janelas
para rua. Era tudo que eu queria. Animada, resolvi fazer uma reforma sem
arquiteto, sem dinheiro, mas com indicações, intuições e palpites. Esses
ingredientes e mais a ingenuidade me levaram a uma óbvia decepção. Me divorciei
do meu primeiro mestre de obras antes que inaugurasse seus antecedentes
criminais.
Veio o segundo pretendente,
Seu Tonho, um velhinho sedutor e seu ajudante que parecia o Homem de Pedra do
Quarteto Fantástico. Eu o chamava de Montanha. Lembro da alegria quase infantil
de Montanha quando decidi derrubar parte da parede entre a cozinha e a sala,
unindo os ambientes (sempre achei chique cozinha americana). Montanha era a
força e Seu Tonho era o cérebro, pensava eu. Tudo ia bem até que cometi um erro:
contratei um pintor. Aprendi que três homens em um espaço pequeno não dão conta
da carga de testosterona circulante. Conhecimento tribal que deveria ter
considerado para evitar disputas territoriais. Quando o pintor saiu, o mal estar
continuou.
Seu Tonho não me olhava nos
olhos. Uma mulher capta os sinais. Tudo me dizia que ele tinha outra. Sim, outra
obra. No entanto, seu discurso sobre hidráulica me convencia de que eu não
podia viver sem ele. Resolvi discutir a relação, mas não perguntei sobre a outra.
Há verdades que não queremos saber. Seria, possivelmente, uma obra mais bonita,
mais volumosa, mais cara, mais mais do que o meu pequeno cafofo. No auge da crise,
onde até o pintor foi citado como agravante, Montanha entra em cena como
terapeuta de casal. Lembra de quando nos conhecemos. Que sempre nos demos bem.
Que nos gostávamos. Não briguem, tudo vai
dar certo. Pediu que nos abraçássemos. E nos abraçamos sob o olhar singelo
de Montanha. Chorei.
Tenho fotos da reforma no
final e, obviamente, de Montanha e Seu Tonho. Nós todos abraçados. Foto de
família. Sei que o chuveiro está na parede errada e que a inclinação de uma pia
produz uma poça. Mas Seu Tonho deixa mais lembrança boa que ruim. Foi ele que
fez meu ninho, meu lugar de retorno, de sonho, sossego, histórias, macarrão e
chá de cidreira. Seu Tonho, o cafajeste simpático. Montanha, o mediador braçal.
Em um instante, com jeito rude, abriu uma janela entre sala e cozinha
iluminando tudo. Em um instante, com jeito terno, abriu meus olhos, acolheu
raivas e me iluminou. Montanha me ensinou sobre sabedoria, preconceito,
simplicidade, força e coração. Mas bem que a altura do balcãozinho da cozinha
poderia ter sido menor. Ah, isso poderia...
* Texto que faz parte da publicação: Santa Sede - Crônicas de
Botequim - safra 2017
Ilusrtração: Nerina Canzio
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