20 fevereiro 2018

FORÇA E CORAÇÃO


Maria Amélia Mano

Anos em dois empregos, economias e fundo de garantia, tudo aplicado em singelos e sonhados 42 metros quadrados: meu primeiro apartamento em um predinho antigo e simpático. Energia boa, ensolarado, luz direta em todas as quatro fantásticas peças. Duas janelas para rua. Era tudo que eu queria. Animada, resolvi fazer uma reforma sem arquiteto, sem dinheiro, mas com indicações, intuições e palpites. Esses ingredientes e mais a ingenuidade me levaram a uma óbvia decepção. Me divorciei do meu primeiro mestre de obras antes que inaugurasse seus antecedentes criminais. 

Veio o segundo pretendente, Seu Tonho, um velhinho sedutor e seu ajudante que parecia o Homem de Pedra do Quarteto Fantástico. Eu o chamava de Montanha. Lembro da alegria quase infantil de Montanha quando decidi derrubar parte da parede entre a cozinha e a sala, unindo os ambientes (sempre achei chique cozinha americana). Montanha era a força e Seu Tonho era o cérebro, pensava eu. Tudo ia bem até que cometi um erro: contratei um pintor. Aprendi que três homens em um espaço pequeno não dão conta da carga de testosterona circulante. Conhecimento tribal que deveria ter considerado para evitar disputas territoriais. Quando o pintor saiu, o mal estar continuou.

Seu Tonho não me olhava nos olhos. Uma mulher capta os sinais. Tudo me dizia que ele tinha outra. Sim, outra obra. No entanto, seu discurso sobre hidráulica me convencia de que eu não podia viver sem ele. Resolvi discutir a relação, mas não perguntei sobre a outra. Há verdades que não queremos saber. Seria, possivelmente, uma obra mais bonita, mais volumosa, mais cara, mais mais do que o meu pequeno cafofo. No auge da crise, onde até o pintor foi citado como agravante, Montanha entra em cena como terapeuta de casal. Lembra de quando nos conhecemos. Que sempre nos demos bem. Que nos gostávamos. Não briguem, tudo vai dar certo. Pediu que nos abraçássemos. E nos abraçamos sob o olhar singelo de Montanha. Chorei.

Tenho fotos da reforma no final e, obviamente, de Montanha e Seu Tonho. Nós todos abraçados. Foto de família. Sei que o chuveiro está na parede errada e que a inclinação de uma pia produz uma poça. Mas Seu Tonho deixa mais lembrança boa que ruim. Foi ele que fez meu ninho, meu lugar de retorno, de sonho, sossego, histórias, macarrão e chá de cidreira. Seu Tonho, o cafajeste simpático. Montanha, o mediador braçal. Em um instante, com jeito rude, abriu uma janela entre sala e cozinha iluminando tudo. Em um instante, com jeito terno, abriu meus olhos, acolheu raivas e me iluminou. Montanha me ensinou sobre sabedoria, preconceito, simplicidade, força e coração. Mas bem que a altura do balcãozinho da cozinha poderia ter sido menor. Ah, isso poderia...   


Texto que faz parte da publicação: Santa Sede - Crônicas de Botequim - safra 2017
Ilusrtração: Nerina Canzio

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O que tem a dizer sobre essa postagem?

Postagem mais recente no blog

QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?

                ? QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?   Camila chegou de mansinho, magra, esfaimada, um tanto abatida e cabisbaixa. Parecia est...

Postagens mais visitadas no blog