![]() |
Imagem capturada na internet, 2018. |
Ernande Valentin do Prado
“Você é homem
letrado
Mas minha
ignorância tem vergonha”.
Antônio das Mortes
Às vezes quero ter a certeza de que o Judiciário age como o
Antônio das Mortes.
— Lembra dele?
Antônio das Mortes, encarnado por Mauricio do Valle, personagem
criado por Glauber Rocha no (extraordinário) “Deus e o Diabo na Terra do Sol”,
de 1964, fez história e ainda está no (meu) imaginário revolucionário.
Antônio das Mortes, em Deus e o diabo na terra do sol, recebe a
missão, dada por Coronéis donos de terras, o clero (da família, propriedade e
tradição) e de políticos, de caçar e matar cangaceiros, o que faz muito bem,
eliminando de forma magistral Corisco, o diabo loiro, quase na última cena do
filme.
Gostem ou não de Corisco ou de Sebastião (ou de João Pedro Stédile
ou de Lula), são eles personagens que no imaginário (de parte) do povo, estão
do lado dos pobres e dos desgraçados da terra, a quem Manoel e Rosa (gente que
não tem mais o que perder) recorrem em busca de continuar a existir, nada mais
do que isso: existir apenas.
A resistência (quase) pacífica do Beato Sebastião termina, não
pela “papo-amarelo” certeira de Antônio da Mortes, mas pelas mãos do próprio
povo.
“Homem nessa terra
só tem validade
quando pega nas armas
pra mudar o destino.
Não é com rosário não
Satanás
é no rifle
no punhal”
Sebastião é despachado para o inferno (como querem os coronéis) ou
para o Céu (como acreditam os fiéis) e Manoel e Rosa, são jogados no partido de
Corisco, que imediatamente rebatiza Manoel, dando-lhe um novo propósito na
vida, como se faz em algumas igrejas neopentecostais:
“Manoel?
Manoel é nome de vaqueiro
Eu te batizo de outro jeito
Chama
Agora
Satanás.
Vamos agora pegar o Coronel Calazans
que ele é gente do governo”.
Corisco e seu bando são caçados pelas terras secas e arrasadas de
um Brasil que insiste em não mudar, até que são condenados pelo TRF1 e até pelo
TRF4. Foi assim ou foi pela fúria justiceira de Antônio da Mortes, o que dá
quase no mesmo, percebe?
— Acabou a resistência?
Ao menos na cabeça de Antônio das Mortes, matador de cangaceiro e
de todo e qualquer herói que não foi institucionalizado, não é bem assim.
Ao matar cangaceiros, beatos e santas e até os miseráveis que se
encontravam no meio, Antônio das Mortes não desejava acabar com a resistência,
pelo contrário, esperava fortalece-la. Ele acreditava que perseguindo,
difamando, condenando, de preferência de forma violenta e injusta na frente de
seus seguidores, o povo não teria outra escolha a não ser aderir a luta por
libertar-se do próprio homem (branco, supostamente heterossexual, a favor do
porte de armas, da pena de morte e do aumento a maioridade penal, contra a leia
Maria da Penha e dito cristão).
— Percebeu a semelhança entre Antônio das Mortes e os atuais
justiceiros?
Só parece que querem acabar com toda e qualquer resistência do
outro lado (certo ou errado, não importa, é o outro lado e tão legítimo quanto
qualquer lado ou isso não é mais uma democracia, mesmo que capenga).
No-fundo-no-fundo, esses senhores de terno, gravata e discursos
arrogantes, podem só estar fomentando a revolta definitiva nas massas. E talvez
essa seja a centelha que faltava.
— Tudo que não nos mata, nos fortalece, não é assim?
E mais cedo ou mais tarde o fogo vai pegar.
As notícias, das grandes mídias, nos deixam, no mínimo, confusos e
ainda não aprendemos a acreditar em nossas mídias. São sentenças exageradamente
severas para um lado só, dizem alguns. Punições brandas, inexistentes ou de
fachadas para o lado de sempre. Condenações por convicção, mesmo que sem
provas. Sentenças dadas antes do julgamento. Parcialidade total, sem disfarces.
Tudo feito de forma transparente e, diria, descarada. Só faltam
dizer, em alto e bom som: FAÇO O QUE QUISER, QUE AQUI, NESTA REPUBRIQUETA DAS
BANANAS, MANDAMOS NÓS.
E a canalha, achando que sua hora não vai chegar, bate palmas com
entusiasmo e finge que é assim mesmo, que está tudo certo.
Acusações de venda de sentença, ritos jurídicos acelerados e
viciados. Salários acima do exorbitante (ultrapassando teto, sobretetos,
bom-senso e o ridículo desmoralizante total). Auxílio moradia inescrupuloso,
verba para educação dos filhos, abuso de poder, despesas reembolsadas por
comprar ternos em Miami e outros absurdos que pisoteia, humilha, enxovalha, cospe
na cara do povão.
E os estrangeiros rindo de nossas instituições burguesas em franca
decadência moral. O que quer dizer, entre outras coisas, que aqui vale tudo.
Não precisa escrúpulo: podem entrar, saquear, rapinar, sem culpa.
Mas quem sabe (e quero acreditar que é isso), só para não
enlouquecer, o plano destes homens de camisa de ouro, compradas com dinheiro
ganho dos ricos (se bem que o judiciário ganha (ou tira) dos pobres também), é
trazer a revolta popular de fato, não uma manifestação de black bloc (que já
cumpriu sua missão, não saques em supermercados, mas uma revolta generalizada
que derrube a bastilha, que não deixe cinza sobre brasas e nem cabeças sobre
pescoços.
Deve ser isso. Só esperar e vamos acabar descobrindo que juízes e
promotores brasileiros só estão agindo, da forma como estão, para trazer a
verdadeira justiça popular, assim como Antônio da Mortes. Ou seja, são
verdadeiramente os verdadeiros revolucionários (praticando o “quanto pior
melhor” que trará a revolução popular) e trarão a justiça para essa terra onde
pode mais quem faz as leis e faz as leis quem pode mais.
E o resto? Bem, o resto é isso aí mesmo.
“— Doutor, há muito tempo que eu tô procurando um lugar pra
ficar... agora eu vou ficar do lado de lá, bem junto da santa. Eu já tô
entendendo quem são os inimigos.”
Antônio da Mortes
[Ernande Valentin do Prado publica no Rua
Balsa das 10 às 6tas-feiras]
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O que tem a dizer sobre essa postagem?