09 março 2018

A BAIXA

Colagem de fotos enviadas pelos companheiros de farda de 1989.
Quando cumpre seu período de serviço militar obrigatório, por volta dos dezenove anos, o soldado dá baixa, ou seja, sai do exército e volta a ser civil. Existem três baixas. Nem todos os soldados saem de uma vez. Existe um período de preparação mínima dos novos recrutas para que assumam as funções de vigilância do quartel.
Aliás, a única função que reconheçia como legítima no Trigésimo Batalhão de Infantaria Motorizada, o 30 BIM, era a guarda. Vigiar o quartel era a única coisa real naquela vida. Mas se não existisse o quartel, não precisaria de ninguém para tirar guarda, não é verdade?
Por isso os soldados eram, e talvez ainda sejam liberados em três baixas diferentes, assim podem continuar vigiando o estabelecimento, função que o recruta ainda não está preparado ao entrar no EB.
Na primeira baixa saíram, naquele ano, os soltados bem-comportados, os que não receberam punições em seu período, que não apresentaram alterações. Os mais obedientes, os soldados padrão, como eram chamados.
Depois saíram os soltados com comportamento intermediário e por último os piores soldados: os que desrespeitavam as hierarquias, que curtiram cadeia e punições, os irreverentes e problemáticos. A minha percepção era a de que só ficava para terceira baixa aqueles que os “superiores” desejavam torturar por mais tempo.
Não tinha ilusões de que conseguiria sair na primeira baixa, apesar do Sargento Borba deixar claro, mais de uma vez, que se dependesse dele eu iria embora na primeira baixa. Aliás, se dependesse do sargento Borba eu nem teria incorporado. Para ele só os bons deveriam ficar para terceira baixa e dar exemplo para os novos recrutas. Eu também pensava assim.
Apesar das divergências políticas e de visão de mundo, eu tinha várias coisas em comum com o Borba, como já contei em outras histórias. Enfim, levando à máxima o pensamento do sargento, defendia e ainda defendo que só os bons soldados, os mais obedientes e que sempre estavam com a farda engomada e o cabelo aparado, deveriam fazer o serviço militar obrigatório. Aliás, o serviço “obrigatório” deveria ser só para voluntários. Exercito, como disse Rita Lee, “só se for da salvação”.
No último dia da terceira baixa, ninguém mais tinha paciência para nada, essa é a mais pura sensação que ainda tenho. Já estávamos de roupas civis, a farda já tinha ficado no alojamento. Mesmo assim ainda formos obrigados a entrar em forma, uma última vez. Farina me lembrou que foram cinco tentativas, mas que o grupo se recusava a obedecer aos comandos. Virávamos para direita, se o comando era virar para esquerda, quando era para marchar andávamos. E fomos assim até a portaria, depois que desistiram de nos fazer obedecer.
Por incrível que pareceu, desta vez era que quem queria seguir as regras, obedecer aos comandos, fazer tudo direitinho para não demorar mais. Porém essa não era a vontade da maioria dos “terceirões”. Ninguém mais queria obedecer a voz de comando, sentiam-se livres, distante de novas punições. Mesmo assim, antes de sair de forma, formos obrigados a ouvir um último sermão sobre hierarquia e obediência aos superiores.
Faltava pouco, pensava eu, angustiado para aquilo terminar logo. Tinha medo do que viria depois, de como eu levaria minha nova vida, mas ao mesmo tempo era como acordar de um pesadelo.
Já há alguns dias Marcão e outros três soltados estavam presos. Eram os últimos de uma guarnição inteira que fora presa na última semana, inclusive Ugo e Farina.
Numa guarda compartilhada com os novos recrutas, durante o momento em que é distribuído as senhas, Marcão acetou um recruta com a coronha do fuzil, porque este lhe chamou atenção por acender um cigarro. Um oficial viu e resolveu prender toda guarnição.
Era uma situação complicadíssimas e meus sentimentos eram confusos. O que aconteceria com eles: ficariam presos por mais tempo, seriam expulsos no último dia de serviço militar obrigatório? Por outro lado, o que fizeram foi coisa muito séria. O recruta chegou a ficar internado. Como perdoar isso, como não se solidarizar com o recruta?
Enquanto marchava no sol já quente daquela manhã, lembrava de histórias contadas no quartel sobre soltados que, mesmo depois da baixa, continuaram presos. Marcão sairia conosco, ficaria preso por mais tempo ou iria da cela militar para uma cela civil?
Da posição em que estávamos em formação, do lado direito de quem sai da base militar, pouco antes do campo de futebol, via-se ao longe o portão das armas, por onde entrou uma viatura da polícia civil, branca e preta. Em minutos ela voltou e começaram os rumores:
— Tá levando o Marcão, foi expulso no último dia da terceira baixa e vai ficar preso.
Muita coisa que aconteceu neste dia, não me lembrava mais. Lembro que que fiquei indignado: ser expulso no último dia era o equivalente a morrer no último dia de guerra.
Apesar da alegria da baixa, de não ter mais que usar farda, de não marchar, de não ter que fazer coisas que me agrediam, sentiria falta da rotina e principalmente dos amigos.
Quase todos aqueles jovens, unidos pela força de uma lei, iriam se dispersar, talvez para sempre. Eu morava em Apucarana, mas iria para São Paulo, Ugo do lado de apucarana, em Arapongas, Mersão já estava em São Paulo, São José dos Campos, Samuel em Ivaiporã, Farina iria para Curitiba, Roque e Wagner engajam, quer dizer que ficariam mais tempo no exército.
Boa parte do que aconteceu depois que o oficial de dia comandou o fora de forma, foi Farina quem me relembrou. Não sei explicar, mas esqueci muita coisa.
Depois que os soldados ainda, mas já com camisetas coloridas e tênis ouviram:
— Fora de forma...
Alguns simplesmente saíram de forma, outros se jogaram no chão, gritavam, xingavam, corriam pelo gramado, houve até quem mijou no chão para demonstrar seu desprezo. Era o momento do extravasamento final.
Do quartel, que ficava mais ou menos 12 quilômetros da cidade, alguns foram caminhando, outro de ônibus. A tradição era tomar banho no chafariz do centro da cidade, na praça conhecida como Redondo e era para lá que a maioria caminhava.
No caminho pilharam um carrinho de sorvete, deixando o sorveteiro desolado. Um recruta fartado foi zoado de as maneiras, sem poder se defender. Até a boina dele jogaram no lixo.
No centro de Apucarana, depois das comemorações em grupo, ficamos eu e Farina caminhando pela calçada, ruma a rodoviária. Ele disse:
— Meu ônibus só sai às oito horas. Paga uma cerveja, Pradinho.
Entramos em um bar, já bem próximo da rodoviária, na esquina do cinema.
— De Curitiba tenho que pegar outro ônibus para casa de minha mãe, mas não tenho dinheiro...
Parou de falar. Ficou um tempo em silêncio tomando a cerveja e então disse, com a cara bem bem-humorada, como sempre estava quase o tempo todo, apesar de parecer estar sempre escondendo uma certa tristeza.
— ...Pradinho, você podia me emprestar o dinheiro da passagem...
— Mas eu já estou pagando a cerveja... Além do mais, nunca mais vou te ver, como vai me pagar?
— Verdade...
Farina ficou um tempo pensando, bebeu mais um gole do copo gelado, olhando para a prateleira atrás do balconista, que subia até o teto, cheia de todo tipo de bebidas, numa composição que particularmente sempre achei muito bonita. Então apareceu com a solução do problema. Farina era cheio de soluções:
— Já que nunca mais vamos nos ver, você podia me dar o dinheiro.
Disse sem sorrir, sem debochar, com a cara mais séria que conseguiu. E, pareceu muito verdade que nunca mais iriamos nos ver, afinal de contas nem sonhávamos que um dia a internet iria existir e acabaríamos nos encontrando nos espaços virtuais da vida.
— Quanto é a passagem?
Simplesmente perguntei, enquanto avaliava uma daquelas linguiças fritas que tinha na vitrine.
— Oito cruzeiros.
Farina abriu um sorriso enorme. Ficou em pé, com sua altura que dava dois de mim. Me abraçou e disse:
— Já que vai dar oito, dá quinze, que sobra para eu comer um sanduiche quando chegar em Curitiba.
— Porra, Farina, aí já é abuso.
Ele ficou com um sorriso no rosto e eu não entendi se concordando que era abusou ou esperando eu ceder. Enfiei a mão no bolso, tirei o dinheiro e lhe entreguei. Ele agradeceu e guardou. Ainda disse:
— Você podia ficar aqui até a hora do ônibus, assim eu não preciso esperar sozinho.
Lembro até hoje que estava muito angustiado, sem saber o que seria de minha vida após as certezas daquele período verde oliva. Meus pais estavam morando em São Paulo, na cidade de Arujá, perto de onde já estava Mersão, em João José dos Campos. Sinceramente não tinha nenhuma vontade de ir para lá. Era bastante apegado a vida que tinha em Apucarana, mas não via outra saída, naquele momento.
Antes de sair e caminhar sozinho por Apucarana pensando em minhas próprias angustias, ainda disse:
— Te pago um sanduiche e mais uma cerveja, assim já economiza na estrada.
Achei que seria a última vez que veria Farina, até Roque encontra-lo no facebook e com ele veio uma porção de outros soldados desta época e veio também a necessidade de escrever essas histórias.
Em janeiro de 2018 Mersão veio de São Paulo até João Pessoa, onde estou morando. Foi um momento muito especial. Trouxe a família para eu conhecer. Ugo esteve no Rio Grande do Norte, mas não apareceu em João Pessoa (Ugo é um pilantra, mas disse que ainda virá). Eu, combinei com Monteiro que quando voltar ao norte do Paraná, passo na casa dele, lá já encontro o Brito, o Wagner e todos que vivem por lá.
Farina já prometeu que virá de Santa Cataria até aqui, de moto. Estou esperando.


Meus agradecimentos ao Farina, que mais uma vez foi quem ajudou a relembrar os vários anteconhecimentos desta história. 

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