06 março 2018

46.1


Maria Amélia Mano

Essa é a vida. Eu vou sempre com meu baldinho e a minha pazinha de remexer na areia. Devagar, quase de brincadeira, cutuco a parte seca onde o mar foi e voltou há mais tempo. Pouco tempo. Olho a paisagem, sempre encantada, como se fosse a primeira vez.

Mas sabe lá o que provoca o mar, o que provoca a areia. Que voltas e re-voltas. Porque quando coloco um montinho de areia na sua mão-mundo, uma retroescavadeira despeja sobre mim, todo o entulho de uma noite, de uma vida. Por que a resposta é tão imensa? Tão intensa?

Surpresa fico. Mas reconheço que não é a primeira vez. Que não é o primeiro desabar, o primeiro sangrar, o primeiro estancar e engolir para se desfazer e se refazer, em silêncio. E calada fico, a espera. Até que a tempestade passe, até que consiga caminhar no vento. Ainda quieta.

Porque a ausência de palavras é a escolha de quem guarda para si e só assim quer que seja. Para si. Para que o elaborar seja solitário como somos na maioria das vezes. Porque o solitário é o mais profundo, mais verdadeiro. Porque o solitário é o que nos entende, na essência dessa vida que é só e uma, só uma.

Não que a palavra seja superficial ou falsa. Mas cada uma no seu momento de existir. E o momento que antecede a decisão é o momento do nó de dentro, de limpar a areia de dentro. Esse ritual é canto no altar de dentro, para os deuses nossos. Reza que se reza de olhos fechados.

Depois, o momento da falta de ar, de desenterrar pés e mãos, de retirar os excessos. E fica o pequeno grão e essas conchinhas teimosas, coloridas, memórias de um tempo em que o melhor era mesmo, nadar juntos na água morna. A gente pode mudar, a gente pode decidir, mas, lá dentro, ainda somos surpresa e expectativa da criança de baldinho, da primeira vez no mar.

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