20 março 2018

OUTONESCER


Maria Amélia Mano

A última sangria do açude do Cedro no Ceará tem mais de 20 anos. Mesmo tempo em que ouvir “açude sangrar” me soa mágico e os festejos de chuva, como dança indígena, já não cabem nos rituais das tribos do sul, onde vivo hoje. Agora, sinto as estações. Amanhece e amanheço em março com ares de outono. Anoitece, anoiteço, outoneço e me enterneço, feliz com as cores de fim de tarde: algo que aprendi a abraçar como o costume do casaco leve que visto e desvisto conforme vento. Conforme conselho de mãe e vó. Mas, de passagem, em visita, escuto a história do açude que transborda água, sangra tal qual esguicho de artéria, no excesso de chuva que é sempre raro em terras áridas. Açude sangrar é quase milagre. É festa e abundância. Memória de lágrima de alegria.
Açude é masculino, mas água é feminino. E, nas estações do corpo, nos ciclos de líquidos mágicos e misteriosos que regulam humores e amores, sangro mensalmente na primavera que persiste em mim. Iniciei a sangrar no verão dos 12 anos. Com 45 recém feitos, o que se esvai em mim, de mim, não é excesso, não é perda, não é ameaça, mas deve ou devia ser, sempre, festa e abundância. Também milagre. Nenhuma represa de guardar, nenhum inverno de inundar, nenhuma hemorragia de estancar, tampouco o medo do estio, da ausência. Nada que seja tão grande que não caiba em si, mas algo que, por caber em mim, me habita, na promessa e na espera. Sei que estas sementes terminarão em breve e serei habitada por inúmeras folhas calmas na alma que é terra. Terra que recebe águas dos céus em mares e sertões que sempre nos povoam.
                E chove, finalmente, chove. Esperança do açude que é mar de água doce na caatinga. Mar que sangra em ano bom de inverno. Estação fria que desejo caminhar com calma e sem medo. Costurar abrigos, aconchegos e ninhos bordados que aprenderei a aquecer. E enquanto folhas começam a cair em mim, vem a chuva. Pessoas se escondem, fogem. Eu, ao contrário, enfrento as grossas gotas guardadas em nuvem tão caprichosa que se fez vazia por anos. Resgato o festejo. Brinco. E na alegria de tantos encontros e recomeços, a terra que sou se aviva. Sei que tenho muito que germinar. Peço para o açude do Cedro sangrar. Porque açude sangrar, lembro, é milagre e festa. Como somos. Porque de alguma forma, sempre sangramos. Sempre parimos. Sempre teremos seios e colos cheios de crias, em todas as estações e solstícios. Serão também filhos nossos os novos sonhos e os novos caminhos.

Texto que faz parte da publicação: Santa Sede - Crônicas de Botequim - safra 2017
- ilustração - Mónica Barengo

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