Maria Amélia Mano
A última sangria do açude do Cedro no Ceará tem
mais de 20 anos. Mesmo tempo em que ouvir “açude sangrar” me soa mágico e os
festejos de chuva, como dança indígena, já não cabem nos rituais das tribos do
sul, onde vivo hoje. Agora, sinto as estações. Amanhece e amanheço em março com
ares de outono. Anoitece, anoiteço, outoneço e me enterneço, feliz com as cores
de fim de tarde: algo que aprendi a abraçar como o costume do casaco leve que
visto e desvisto conforme vento. Conforme conselho de mãe e vó. Mas, de
passagem, em visita, escuto a história do açude que transborda água, sangra tal
qual esguicho de artéria, no excesso de chuva que é sempre raro em terras
áridas. Açude sangrar é quase milagre. É festa e abundância. Memória de lágrima
de alegria.
Açude é masculino, mas água é
feminino. E, nas estações do corpo, nos ciclos de líquidos mágicos e
misteriosos que regulam humores e amores, sangro mensalmente na primavera
que persiste em mim. Iniciei a sangrar no verão dos 12 anos. Com 45 recém
feitos, o que se esvai em mim, de mim, não é excesso, não é perda, não é
ameaça, mas deve ou devia ser, sempre, festa e abundância. Também milagre.
Nenhuma represa de guardar, nenhum inverno de inundar, nenhuma hemorragia de
estancar, tampouco o medo do estio, da ausência. Nada que seja tão grande que
não caiba em si, mas algo que, por caber em mim, me habita, na promessa e na
espera. Sei que estas sementes terminarão em breve e serei habitada por
inúmeras folhas calmas na alma que é terra. Terra que recebe águas dos céus em
mares e sertões que sempre nos povoam.
E
chove, finalmente, chove. Esperança do açude que é mar de água doce na caatinga.
Mar que sangra em ano bom de inverno. Estação fria que desejo caminhar com
calma e sem medo. Costurar abrigos, aconchegos e ninhos bordados que aprenderei
a aquecer. E enquanto folhas começam a cair em mim, vem a chuva. Pessoas se
escondem, fogem. Eu, ao contrário, enfrento as grossas gotas guardadas em nuvem
tão caprichosa que se fez vazia por anos. Resgato o festejo. Brinco. E na
alegria de tantos encontros e recomeços, a terra que sou se aviva. Sei que
tenho muito que germinar. Peço para o açude do Cedro sangrar. Porque açude
sangrar, lembro, é milagre e festa. Como somos. Porque de alguma forma, sempre
sangramos. Sempre parimos. Sempre teremos seios e colos cheios de crias, em
todas as estações e solstícios. Serão também filhos nossos os novos sonhos e os
novos caminhos.
* Texto que faz parte
da publicação: Santa Sede - Crônicas de Botequim - safra 2017
- ilustração - Mónica Barengo
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