16 março 2018

NINGUÉM SENTIU SUA FALTA


Imagem capturada na internet, 2018.
Ernande Valentin do Prado

Kátia Maria das Dores, de vinte e três anos, saiu do forró do Bezerra, na sexta-feira por volta das três horas. Caminhou pela rua, descalça carregando os sapatos nas mãos. Ia em direção a sua casa, que ficava perto.  
Estava alcoolizada o suficiente para trançar as pernas.
Apesar de caminhar em direção à sua casa, Kátia lá não chegou.
Ela deixou os meninos com Dona Margarida, na sexta-feira pela manhã e foi se arrumar para o forró que iria à noite. Dona Margarida, na segunda, ainda não tinha dado falta da filha. A mãe, acostumada com os sumiços eventuais da filha, não deu importância ao fato, nem deu queixa na delegacia. Sabia que a filha poderia ter se desviado no caminho, assim como já tinha desviado da vida que queria para ela.
Às vezes, Dona Margarida Maria das Dores, queria que a filha sumisse de vez. Estava cansada de passar vergonha com a menina tão falada que, em seu íntimo, pedia a Deus...
— Melhor nem dizer.
 Quando lhe perguntaram sobre Kátia, na segunda-feira, disse despreocupada:
— Dessa aí só Deus sabe.
Pensava que tivesse tomado o caminho de sua própria casa ou ido dormir com o ex-marido.
— Não seria a primeira vez... e nem a última...
Era o que pensava.
- ...não sei qual desses dois tem menos vergonha na cara, Deus me livre!
A sofrida mãe limpou o suor da testa com a manga do vestido, olhando os netos pequenos que brincavam no quintal. O menino corria atrás de uma gorda galinha e a menina penteava os ralos cabelo loiros de uma imitação baratinha de Barbie, já bastante desgastada.
Kátia e Marcelino estavam separados há seis meses e volta e meia se encontravam para fazer as pazes...
— Pelo bem das crianças...
Era o que falava o homem franzino, de mais ou menos metro e sessenta e alguma coisa.
Na única foto encontrada de Marcelino, via-se um homem com barba tão malfeita quanto sua aparencia desmilinguida.
— Que mulher ia querer um trapo desses?
Era o que pensava o policial, olhando a barba que crescia em tufos aqui e ali e buracos entre uma moita e outra de barba. Mas uma coisa era impressionante: a barba do homenzinho era tão preta que deu até inveja. O encarregado da investigação, de uns 40 e tantos anos, já tinha os pelos da cara bem grisalhos. Até coçou o queixo branco olhando a cor da noite da barba do ex-marido de Kátia.
— Ao menos não sou corno...
Pensou em silêncio o policial e logo corrigiu-se mentalmente, porque corno é sempre o último a saber e quase sempre o único a não saber. Então, se era corno, como saberia?
— ... ao menos não tenho fama de broxa.
Conformou-se e decidiu não deixar mais sua imaginação devanear em assunto que não tinham relação com o caso.
Marcelino Pedro Cavalcante, de vinte oito anos fora encontrado morto na segunda-feira por volta do meio dia. Um tiro na cabeça. Quer dizer, um tiro que entrou pela base do crânio e saiu na altura do osso occipital. Morte instantânea, pensou o policial, já mais acostumado com aquilo do que o ser humano deveria ser capaz.
A arma estava próxima da mão esquerda da vítima, que era canhoto. No quintal a polícia encontrou o corpo de Kátia. A tragédia aconteceu na casa onde moravam, quando casados. Ele não aceitava o fim do relacionamento e tentou a reconciliação, pela quinta e última vez.
— Ao menos é o que sugeria a cena.
Concluiu o policial, ainda com a imagem da barba preta de Marcelino na cabeça:
— Que desperdício.
Marcelino atirou em Kátia na madrugada de sexta para sábado, depois de a encontra-la saindo do Forró do Bezerra, famoso risca faca de Brejo Grande.  Ao ver a ex-companheira ferida, ficou desesperado.
— O que me resta na vida, agora?
Não pensou nos filhos, nem no que poderia lhe acontecer. Pensou na vida sem Kátia e isso parecia insuportável. Com ela viva ainda tinha esperanças, podia correr atrás dela, brigar, insistir, até odiá-la. Mas com ela morta, qual o sentido de sua vida?
O delegado, Galênio Silveira do Amaral, usando seu mais novo terno, disse não ter dúvidas de que fora um crime passional. O casal estava separado, e o homem não aceitava o fim do relacionamento.
— Já ouviu alguma testemunha, Delegado?
Perguntou o rapaz com o telefone celular na não.
— Perfeitamente...
Disse o delegado, virando-se para outro rapaz que tirava fotos.
— ...testemunhas afirmaram que Marcelino perseguia a ex-mulher, exigindo a reconciliação. Várias testemunhas afirmaram que os dois brigavam até em locais públicos e que, não raras vezes, Kátia se referia ao ex-marido como broxinha.
— Ela não dava satisfação do que fazia.
Disse a mãe, sem nenhum remorso, mas também sem esconder uma lágrima que rolou do olho esquerdo.
— Foi uma surpresa encontrar o corpo de Kátia no quintal da casa...
Disse o delegado, pousando para mais uma foto, que minutos depois estaria no blog de notícias policiais e nos programas policiais das rádios da cidade e até da capital.
— Quem sabe até nos programas da tv.
Pesava secretamente.
O delegado não soube responder se existiam denúncias de ameaças de Marcelino contra a vida da ex-companheira, talvez por serem muitos os casos de violência na cidade.
— Ou talvez por não dar importância a esse tipo de denúncia.
Pensou o rapaz que gravava o depoimento do delegado com o celular.
— Deixa isso prá lá, coitado do broxinha.
Disse, certa vez o delegado, para o policial de barba quase branca, diante de uma queixa de Kátia.
Kátia passou a madrugada de sexta para sábado, todo o domingo e só fora encontra, já morta, na segunda-feira por volta do meio dia.
— ...o tiro nem foi tão sério, se ela tivesse sido socorrida de imediato, a vítima não estaria morta.
Afirmou o delegado e concluiu:
— “Kátia morreu porque ninguém sentiu sua falta”.



[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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