Maria Amélia Mano
Atendo Maria
Rosa e Maria Flor em tempos e dias diferentes.
Maria Rosa,
mais velha, também com vínculo e acompanhamento mais antigo. Diabética, não
consegue controlar dieta, remédios, vida. Esposo atual ajuda pois diz que
quando ele precisou, ela ajudou. Mas nem a ajuda, nem o cuidado e a gratidão do
esposo impediu que ela perdesse um pé e que esteja perdendo a visão. E eles sempre me comovem...
Maria Flor,
mais nova, vínculo mais recente. Começo a acompanhar por uma depressão após a
perda do filho recém-nascido. A criança tinha uma malformação grave, ela já
sabia desde o pré-natal, mas tinha esperanças. Quando disseram o que ele tinha,
Maria Flor pensou: tenho amor suficiente para superar. Mas nem o maior amor
impediu que ele partisse.
E como falta
espaço na agenda, e como penso que elas precisam, acabo criando horários
inexistentes. E faço confusões, confesso!
Um dia, assim, sem querer, agendo as
duas quase no mesmo horário. Maria Flor primeiro e depois, Maria Rosa. Depois
da consulta, quando me despeço de Maria Flor, ela me pergunta: agora, vai
atender minha mãe? Sim, então, eu atendia mãe e filha sem saber. Não se falavam
há meses, não se entendem e se desencontram há anos. Coincidência...
Abrem-se
algumas portas de silêncios entre as duas, entre nós três. Quando houve a perda
do filho, Maria Flor se culpou. Achava que era o coração cheio de mágoa que
havia adoecido o filho que esperava. Tudo veio à tona. A dor de uma infância
perdida entre os abusos do padrasto, o companheiro anterior de Maria Rosa que fingia não ver o que acontecia.
Nada,
nunca Maria Flor tinha revelado tamanha dor. Só quando perdeu amor imenso, só quando
sentiu que poderia gerar algo dolorido dentro de si, só quando transbordou. Maria Flor era água imensa, em represa. Água de muitas chuvas. E virou cachoeira, açude que sangra. E
sentiu alívio. Leveza doída, mas leveza...
Por último, Maria Flor com dor de dente. Justo agora, quando
abriu um baú de tristes guardados. Dentista não consegue identificar a razão certa. Acha que é uma cárie extensa. Que é o ar que atinge algo exposto, quando fala. Dou
o tempo. Sei que falar dói, especialmente quando se silencia por anos, décadas. O tal do ar, do vento, da exposição de uma ferida aberta.
Maria Rosa, na última consulta, chora pela perda da visão, não se conforma, parece perdida em um mundo assustador que desconhece. Faço
os encaminhamentos. Sei que viver no escuro dói e, talvez, enxergar o que não
se quer, dói também. Sua face é de uma criança que tem medo. Talvez seja ela mesma voltando à infância. Talvez explique as cegueiras. Talvez...
Maria Rosa, que
não quis ver, talvez nunca volte a ver. Ao contrário, Maria Flor que nunca
falou, que sente dor quando fala e faz pausas, vai voltar a falar. E espero
que, cada vez mais, sinta menos dor e entenda, que mortes podem gerar
nascimentos, que perdas podem resgatar almas, que ausências podem trazer de
volta não o que fomos, mas o que queremos ser.
E continuo
atendendo Maria Rosa e Maria Flor em tempos e dias diferentes. Tentando escutar
e entender dores, mágoas e culpas, sem julgar. Entre os olhos sem brilho e a voz dolorida, as lágrimas. E esses amores que faltam ou, esses amores que mesmo tão grandes, não são suficientes. Esses amores...
Ah, essas
minhas eternas confusões de horários imaginários, de coincidências de
encontros. Estou certa de que, do lado de fora, na sala de espera e nesse caderninho que chamo
agenda, tem um anjinho que conspira e inspira, escrevendo com reticências e outras tintas, os rumos dos dias.
Dizem que os anjos não tem sexo, mas tenho a sensação que esse, essa, em especial, é uma anjinha. Agradeço a parceria e a ajuda, Anjinha, de coração e alma.
Ilustração: Audrey Kawasaki
Ilustração: Audrey Kawasaki
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