Imagem: John Holcroft
Ela abriu a porta da unidade quase que pressentindo naquela manhã. Na Unidade de Saúde Rural, há cerca de 100 kilômetros de distância do centro de referência mais próximo. Médica recém formada. Recém, no celeiro onde uma grande maioria de médicos recém formados e com pouca experiência vai parar. Os agricultores da região viam naquelas mãos um nesgo de esperança. “A doutora escuta a gente”.
Talvez tem o início de um choro do futuro no seu rosto. Estava no consultório com outro paciente quando bateram na porta, "doutora vem rápido". Estava a enfermeira já enluvada a mulher com muita dor em trabalho de parto. Toque 5cm de dilatação. Batimentos cardíacos fetais oscilando. Contrações inefetivas.
Trabalho de parto sem progressão. Ocitocina, orientações, entra todo mundo na pequena sala de urgências. Tira todo mundo de lá. Respira fundo. Liga para o SAMU.
“A ambulância só consegue chegar aí daqui 2 horas está em um outro deslocamento”. O cálculo não é difícil, mais duas horas até cobrir os 100km, 4 horas. Será que conseguimos aguentar? Será que nasce antes? Pede-se prioridade, mas o estado inteiro precisa de prioridade.
A respiração fica profunda, medicações, soros, troca de posição. Mas não passa de 6cm de dilatação na primeira hora o Batimento Cardíaco Fetal fica mais devagar. Telefona para a ambulância. “Preciso para ontem”. Não chega. "Tem opção de transporte aéreo?".
Não tem, não vem, não anda, não evolui, não nasce.
Alguns colegas iriam dizer, culpa é dela que escolheu trabalhar onde não tem recurso. Mas tem recurso assim para ter um hospital no meio rural? Ter equipe com anestesista no meio do verde do milho? Equipe com obstetra? Pediatra? Lá onde se planta a soja? Vários vão condenar “culpa da médica que foi parar lá”, mas deixaria a bolsa de romper, o bebê de quase nascer ou a mãe de entrar em trabalho de parto por estarem na zona rural? Deixaria a zona rural de existir só porque não tem profissionais qualificados e estrutura nela?
Não nasceu, não viveu. Todos ouvem os batimentos cardíacos fetais sumirem enquanto não tem recurso, não tem legislação, não tem médico e profissionais adequadamente treinados para mais de 60% do Brasil que vive na área rural. Enquanto não chega a ambulância um suspiro, uma lágrima. Uma fatalidade? Uma estatística? Será? Ou será que poderíamos evitar isso?
De parto para luto. Errar é humano, matar e morrer é humano também. Mas um médico na zona rural sem treinamento é desumano.
Abraços que pousam,
Mayara Floss
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