Maria Amélia Mano
Eloísa lembra. Quando decidiu se atirar da
janela do décimo andar, quando apertou o gatilho da arma apontada para o peito,
quando se ateou fogo, quando se atirou diante do trem, quando engoliu todos os
comprimidos, quando deixou o gás aceso e fechou a porta, se encerrou em casa e
colocou nenhuma música. Lembra das passagens de quase-sucesso com sorriso
vazio. O trem, sim, esse era especial, o ruído, no início, perturbava, mas os
trilhos, os dormentes, os vagões vazios, ternura tão leve e pesada, ao mesmo
tempo. Ao mesmo tempo. Lembra do sono e do torpor da química e do gás.
Sensações diferentes. Sim, dormir ouvindo o som da rua, os pássaros em volta do
pé de amora, único que faz sombra na calçada, refúgio dos que esperam, descanso
de sóis, quenturas, canduras. Aquela amoreira, por ela, tantas vezes, achou que
valia a pena. Foi florida, foi seca, foi de todas as cores. A prova que a vida
é feita de fases, de ciclos, de estações, de tempos. A prova que tudo pode
mudar. Esperança. Aquela amoreira, por ela, fraquejava, fraquejou. Aquela casa
de tantas vidas pequenas que, teimosas, recomeçam em cada galho, cada nervura
de folha, nervos, nevos, sinais, sinos. E voltava a si: mas que se mantenha a
tristeza, a arte de desabar, que se tire a amoreira, que tire a casa dos
insetos, que tire os sonhos, que tire a alma, que tire a roupa em calor
intenso, calor. Lembra das chamas: Eloísa em chamas. Ainda lembra dos chamados,
dos estrondos, o ruído depois do gatilho, pó e pólvora, estilhaços sujando a
biblioteca, a coleção de livros sobre naufrágios, a foto deles, sobreviventes
de noites. Pensa neles, pensa: O que
deveríamos ter feito? O que deveríamos ter dito? Logo ela, Eloísa, que lia o que ele grifava nos
livros, seguia seus passos, sabia o que importava. Pensava que sabia. Foi
descuidada, desatenta, desatada. Nem quando o louco profeta das ruas, com
barbas brancas e trapos, nem quando disse, em outras línguas, idiomas únicos de
terras inexistentes, que era o fim do mundo. Nem assim Eloísa acreditou e
continuou escrevendo poemas em pedras e atirando em rio seco, aposta em sonho
árido, terra sem sementes. Trago seu amor de volta aos seus pés, prometeu a
cigana e Eloísa não escutou. Já era um aviso no meio daquela feira de vinis,
lugar que não era lugar de magias
. Lembrou ainda do abajur do poeta comprado em
antiquário que diziam inspirar. Presente de amor. A cúpula e a luz antiga
ficaram depois que ele se foi. Fiel companheiro iluminado, já gasto em gesto de
acender e apagar em resto de madrugada, refletindo no espelho, como a flor da
janela, os olhos de Eloísa, olhos de agosto, de
agora, de amora entre os lábios. Sim, ela venceu, a amoreira. Por ela e seus
galhos, o frutinho disputado por pássaros e meninos da rua. Sorte de Eloísa ter
plantinha assim, na porta de casa, na porta do coração. Jogou água nas chamas,
desviou arma, pulou na sacada do vizinho, faltou o gás, escondeu cartela de
comprimidos e fez parar o trem. Eloísa lembra, vendo os habitantes dessa casa
pequena de enfeites vermelhos-enrugados. Eloísa lembra, vendo o vento bater na
doçura que dança em música de vinil, em luz de abajur de poeta. Eloísa, lembra,
vendo as lagartas se transformarem em borboletas.

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