19 junho 2018

CONTOS DE QUITANDA IV - AMORA


Maria Amélia Mano

Eloísa lembra. Quando decidiu se atirar da janela do décimo andar, quando apertou o gatilho da arma apontada para o peito, quando se ateou fogo, quando se atirou diante do trem, quando engoliu todos os comprimidos, quando deixou o gás aceso e fechou a porta, se encerrou em casa e colocou nenhuma música. Lembra das passagens de quase-sucesso com sorriso vazio. O trem, sim, esse era especial, o ruído, no início, perturbava, mas os trilhos, os dormentes, os vagões vazios, ternura tão leve e pesada, ao mesmo tempo. Ao mesmo tempo. Lembra do sono e do torpor da química e do gás. Sensações diferentes. Sim, dormir ouvindo o som da rua, os pássaros em volta do pé de amora, único que faz sombra na calçada, refúgio dos que esperam, descanso de sóis, quenturas, canduras. Aquela amoreira, por ela, tantas vezes, achou que valia a pena. Foi florida, foi seca, foi de todas as cores. A prova que a vida é feita de fases, de ciclos, de estações, de tempos. A prova que tudo pode mudar. Esperança. Aquela amoreira, por ela, fraquejava, fraquejou. Aquela casa de tantas vidas pequenas que, teimosas, recomeçam em cada galho, cada nervura de folha, nervos, nevos, sinais, sinos. E voltava a si: mas que se mantenha a tristeza, a arte de desabar, que se tire a amoreira, que tire a casa dos insetos, que tire os sonhos, que tire a alma, que tire a roupa em calor intenso, calor. Lembra das chamas: Eloísa em chamas. Ainda lembra dos chamados, dos estrondos, o ruído depois do gatilho, pó e pólvora, estilhaços sujando a biblioteca, a coleção de livros sobre naufrágios, a foto deles, sobreviventes de noites. Pensa neles, pensa: O que deveríamos ter feito? O que deveríamos ter dito? Logo ela, Eloísa, que lia o que ele grifava nos livros, seguia seus passos, sabia o que importava. Pensava que sabia. Foi descuidada, desatenta, desatada. Nem quando o louco profeta das ruas, com barbas brancas e trapos, nem quando disse, em outras línguas, idiomas únicos de terras inexistentes, que era o fim do mundo. Nem assim Eloísa acreditou e continuou escrevendo poemas em pedras e atirando em rio seco, aposta em sonho árido, terra sem sementes. Trago seu amor de volta aos seus pés, prometeu a cigana e Eloísa não escutou. Já era um aviso no meio daquela feira de vinis, lugar que não era lugar de magiashttps://ssl.gstatic.com/ui/v1/icons/mail/images/cleardot.gif. Lembrou ainda do abajur do poeta comprado em antiquário que diziam inspirar. Presente de amor. A cúpula e a luz antiga ficaram depois que ele se foi. Fiel companheiro iluminado, já gasto em gesto de acender e apagar em resto de madrugada, refletindo no espelho, como a flor da janela, os olhos de Eloísa, olhos de agosto, de agora, de amora entre os lábios. Sim, ela venceu, a amoreira. Por ela e seus galhos, o frutinho disputado por pássaros e meninos da rua. Sorte de Eloísa ter plantinha assim, na porta de casa, na porta do coração. Jogou água nas chamas, desviou arma, pulou na sacada do vizinho, faltou o gás, escondeu cartela de comprimidos e fez parar o trem. Eloísa lembra, vendo os habitantes dessa casa pequena de enfeites vermelhos-enrugados. Eloísa lembra, vendo o vento bater na doçura que dança em música de vinil, em luz de abajur de poeta. Eloísa, lembra, vendo as lagartas se transformarem em borboletas.

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