Maria Amélia Mano
Coreto de praça em cidade de
fronteira, limite de fim de mundo e começo de outro. Pedintes, vendedores,
andarilhos, aventureiros, viajantes, farsantes, todos passantes, passageiros,
todos temporários. Só ela, a menina sem nome, a menina do violão fica mais
tempo e sempre volta. Canta músicas antigas por alguns trocos atirados em
chapéu no chão da praça. Tangos, boleros chorosos, aqueles de infância, aqueles
que se ofereciam para os amores nas rádios AM, aqueles que as mães cantavam,
enquanto lavavam roupa em rio.
Os
velhinhos pedem por uma e outra canção. A menina do violão sempre sabe e sempre
canta sob o olhar de saudade dos espectadores, os que teimosamente ficam mais
um pouco por aquelas bandas de ninguém ficar. Dizem que canta também na praça
do outro lado, o outro mundo que também tem seu fim onde começa este. Muitos
fins e começos. Mas, enfim, assim dizem, lá, ela também canta em outra língua.
E também junta os mais velhos em volta de letras de antigamentes.
Só,
por raro instante, a menina cerra os olhos de um jeito como se olhos fechados
fossem o natural da vida. O que exige menos esforço, o que facilita a voz de
sair. E nem teme pelo sumiço dos trocos no chapéu, dinheiros de dois lados,
moedas de heróis desconhecidos de dois povos, gente tão junta e tão separada,
em movimento de cruzar horizontes, cruzar linhas que mais marcam vincos nas faces,
abandonos. Pois ela, a menina, assim, confia na sorte daquelas terras de tantos
limites, de tantos caminhos e tantos sem rumo.
E
canta Raul Seixas de olhos fechados: Pedro
onde cê vai eu também vou. E é lindo de ouvir, lindo de ver menina, assim,
de olhos fechados mesmo que, do outro lado do mundo, se entenda por partes.
Menina morena, mestiça de sol de rua e lua de praça, de caminho, de canção,
sorriso sincero, limpo, que agradece cada moeda caída, cada nota antiga,
rasgada, escrita, história, memória que rodopia, como ela, como todos ali, assim,
na praça, até cair, tranquila, como folha de outono, em chapéu andarilho,
sustento e sina.
E
segue do fim deste mundo para o começo do outro mundo, trançando os cabelos
escuros em fitas surradas, pura poeira, pura, leve, segue em esperança de
sandálias. Recomeça da última canção, dizem, em praça e língua irmã, velhinhos
que pedem pelas vidas idas em sotaques misturados, cantigas de tempos e vidas.
Nas pausas, então, o cerrar de olhos. E é quando deve sumir o medo do futuro,
da fronteira entre o que é e o que será. Vai o violãozinho em notas fortes e a
voz da alma: Mas tudo acaba onde começou.
E
só abre os olhos quando batem palmas. Olhos escuros de infinito, noite, onde,
por vezes, uma estrela cai, cadente lágrima de tantos mundos perdidos e pedidos
de canções para lembrar do que, um dia, se foi.
Ilustração:
Shozo Ozaki
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