31 julho 2018

QUE O BOTÃO DE ROSA CAIA


Maria Amélia Mano

Primeiro foi a menina no trem de Minas, lugar pequeno de pouca novidade, só o trem. Quando o trem passou, ela mostrou o desenho da escola para os passageiros desconhecidos, em movimento, orgulhosa menina. Desenho simples, casinha com chaminé, cerca, árvore com frutas, jardim, sol no céu. Eu no trem, um pouco, ali, regressando de mim. Me engasgando de carinho de caminho, por minutos. E depois, com algum orgulho, suportando com dança de capoeirista, a grosseria dos dias, resistindo, gingando. Eu caio, mas faço passo de volta. Até finjo que não dói. Forte, me convencia.

Depois foi Mônica Salmaso cantando Cuitelinho. Amélia esmilinguida se desmanchando em lágrima. É, sou eu mesmo, me escorrendo até o palco, me transformando em corpo de baile, rodopiando, me esvoaçando em tule e algodão, asa de passarinho leve, leve. De novo, eu me regressando em cada ai, ai de fala simples, de fala errada, de alma, ai, ai, eu, de novo. Mas me volta o orgulho de não me dobrar, feito bambu, feito graveto que parece fino e fraco, mas resiste ao vento. E ergo queixo como se espada fosse, como se arma tivesse, lágrima já seca. Ainda forte, me insistia.

E por tempos, assim segui, metida, heroica. Mas teve muito milagre que nem pedi que viesse pra me livrar de alguma dor. Esses que sempre me resgataram de algum sequestro, de algum exílio, da necessidade tola de ser forte. Exigência que veio, um dia, quando migrei de mim. Porque, em mim, já não tinha lugar, tão repleta de vazio e excesso. Onde começava a falta? Onde começava a cheia? A resposta, pra mim, era refúgio e fuga: não sentir tanto. Mas, resposta certa nunca foi meu forte. Meu forte era meu frágil, aprendi depois. Forte me refazia em fragilidade. Frágil me refazia em fortaleza.

Hoje, não quero mais orgulho de me erguer rápido. Não quero costume, jogo de cintura, criar calo, ficar de palma da mão grossa e deixar de sentir pele fina, fios, linhas, lábios, detalhe. Não quero perder a despedida, o último abraço. Se me engasgar, se sangrar, se doer, se rir até passar mal, se me perder ou perder o ar, se me transbordar e até uivar, uma noite inteira, doida e doída como bichinho preso no quintal, saberei não fugir, não sair de mim, mas encontrar meu lugar de ficar. Forte, ainda, na agonia e no recomeço.

Forte na humanidade da vergonha, da decepção e do choro, na saudade, no medo, na gula e fome, frio, fastio e estio. Esse sofrer, mas sorver vida que deve ser tanta, deve ser, para que eu exista como gente. E que a ternura sempre me assombre, me surpreenda, me faça voltar de mim. Ter vontade de sair do trem e abraçar a menina que mostra o desenho de sol ou cantar com Mônica Salmaso, desafinada e desafiada, desfiada em linhas de tecer essa coberta de enfrentar vida. Forte coberta em que me abrigo e me aqueço, em mais um começo de inverno.

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