25 setembro 2018

MULHER DO FIM DO MUNDO


Maria Amélia Mano

         Ambos se foram em verões, deixando equinócios magoados.

Ela, que tinha nome de mar, não chegou a ver o outono de 2018 nas ruelas dos morros do Rio. Ele, que tinha nome de verbo, não chegou a ver o outono de 1996 tornar menos cinza o céu de Sampa, e mais lindo o pôr de sol de Porto Alegre. Ela não chegou aos 40, ele não chegou aos 50. Ele se foi de vírus. Ela de bala, muitas balas. Cada um, em seu tempo, com suas lutas, com as razões e desrazões de suas épocas, partiram.  

Ele, branco, ela, negra. Ele, internacional, em vida. Ela, internacional, em morte.  Ela, Maré e Estácio, ele, Santiago e Menino Deus. De mundos distantes, tinham três décadas de diferença. Mas, tenho certeza, no auge dos 70, hoje, vivo, ele escreveria sobre ela e sangraria como era de sangrar. E esbanjaria tanto quanto cobraria humanidade. E faria perguntas no fim dos parágrafos e no fim do texto e a chamaria de baby, com a intimidade dos que compartilham jeitos diferentes de amar.

Poderia ele descrever a chegada dela no céu, cumprimentando Martin Luther King que também se foi de bala sem chegar aos 40. Encontraria ainda Malcom X que, adivinhe, sim, também se foi de bala sem chegar aos 40. Seria acolhida, talvez, imaginasse ele, na maturidade, na calma e no colo de Carolina de Jesus. Mandela faria um cafuné e Mãe Menininha cuidaria das saudades e dores ao som de Carinhoso, na flauta de Pixinguinha.

Ele falaria da podridão das cidades escuras e das emboscadas dos submundos. Imaginaria, quem sabe, os últimos segundos antes do fim. Coisas corriqueiras como a música que ela pediu para escutar, a fome depois de um dia longo, o desejo do abraço da companheira à espera. Também o último sonho e o último medo, talvez o último grito. Penso que divagaria: nada, nada é realmente corriqueiro. A vida, do primeiro ao último gole, é feita dessa maravilhosa mesmice do chegar em casa em uma noite de março.

Como ele era inusitado e impertinente, traria a versão do outro, os últimos segundos dela nas mãos de quem puxou o gatilho. Penso que ele arriscaria em dizer: foi um homem. Capitão do Mato dos nossos dias, vivendo ainda do prazer da captura, da alegria da corrente, da intensidade do estalo do açoite, da dor no tronco, do silenciamento de irmãos de memória e pele em senzalas de arame farpado, canavial e chão de fábrica.

E ele escreveria com paixão, entre lágrimas, citando Zumbi e Dandara, anunciando um Palmares no céu de peixes, sob a voz rouca de Elza Soares: eu sou, eu vou até o fim, cantar, cantar.

 - Texto da Oficina em homenagem a Caio Fernando Abreu: Caio em mim

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