Maria Amélia Mano
Ambos se foram em verões,
deixando equinócios magoados.
Ela, que tinha nome de
mar, não chegou a ver o outono de 2018 nas ruelas dos morros do Rio. Ele, que tinha
nome de verbo, não chegou a ver o outono de 1996 tornar menos cinza o céu de
Sampa, e mais lindo o pôr de sol de Porto Alegre. Ela não chegou aos 40, ele
não chegou aos 50. Ele se foi de vírus. Ela de bala, muitas balas. Cada um, em
seu tempo, com suas lutas, com as razões e desrazões de suas épocas, partiram.
Ele, branco, ela, negra.
Ele, internacional, em vida. Ela, internacional, em morte. Ela, Maré e Estácio, ele, Santiago e Menino
Deus. De mundos distantes, tinham três décadas de diferença. Mas, tenho
certeza, no auge dos 70, hoje, vivo, ele escreveria sobre ela e sangraria como
era de sangrar. E esbanjaria tanto quanto cobraria humanidade. E faria
perguntas no fim dos parágrafos e no fim do texto e a chamaria de baby, com a intimidade dos que
compartilham jeitos diferentes de amar.
Poderia ele descrever a
chegada dela no céu, cumprimentando Martin Luther King que também se foi de
bala sem chegar aos 40. Encontraria ainda Malcom X que, adivinhe, sim, também se
foi de bala sem chegar aos 40. Seria acolhida, talvez, imaginasse ele, na
maturidade, na calma e no colo de Carolina de Jesus. Mandela faria um cafuné e
Mãe Menininha cuidaria das saudades e dores ao som de Carinhoso, na flauta de
Pixinguinha.
Ele falaria da podridão
das cidades escuras e das emboscadas dos submundos. Imaginaria, quem sabe, os
últimos segundos antes do fim. Coisas corriqueiras como a música que ela pediu
para escutar, a fome depois de um dia longo, o desejo do abraço da companheira
à espera. Também o último sonho e o último medo, talvez o último grito. Penso
que divagaria: nada, nada é realmente corriqueiro. A vida, do primeiro ao
último gole, é feita dessa maravilhosa mesmice do chegar em casa em uma noite
de março.
Como ele era inusitado e impertinente,
traria a versão do outro, os últimos segundos dela nas mãos de quem puxou o
gatilho. Penso que ele arriscaria em dizer: foi um homem. Capitão do Mato dos
nossos dias, vivendo ainda do prazer da captura, da alegria da corrente, da
intensidade do estalo do açoite, da dor no tronco, do silenciamento de irmãos
de memória e pele em senzalas de arame farpado, canavial e chão de fábrica.
E ele escreveria com paixão, entre
lágrimas, citando Zumbi e Dandara, anunciando um Palmares no céu de peixes, sob
a voz rouca de Elza Soares: eu sou, eu
vou até o fim, cantar, cantar.
- Texto da Oficina em homenagem a Caio Fernando Abreu: Caio em mim
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