07 setembro 2018

NÃO PRECISA SER SÓ O BÁSICO


Ernande Valentin do Prado

A Morte e a Vida - gustav klimt







Bem antes da existência das Equipes de Saúde da Família (ESF) voltadas para população carcerária que existem hoje, a equipe na qual trabalhava fazia atendimentos regulares na delegacia do município, que era uma comarca, e atendia presos de outras cidades da região.
Essa agenda de atendimento na delegacia iniciou-se a pedido de um soldado da Polícia Militar (PM). Isso mesmo, a pedido de um policial militar, com farda e tudo.
Segundo ele, era de cortar o coração ver aqueles “pobres coitados” jogados na cela sem atenção de ninguém.
Em uma quarta-feira, mais ou menos às dez horas, o soldado e a coordenadora da UBS, conhecida dele, talvez da igreja, me abordaram no corredor. Lembro que os dois estavam constrangidos, talvez com vergonha de pedir atenção para “presos” diante da necessidade de tantas outras pessoas. Neste dia a UBS estava cheia, o que deve ter contribuído para aumentar o constrangimento do pedido.
Perguntaram baixinho, como quem tenta saber a opinião do outro antes de entrar no assunto. Depois falaram das características dos presos, das doenças, das dores, da necessidade de perdão.
Eu… eu ouvi com vergonha. Não, não foi só vergonha. Fiquei me remoendo por dentro, sem saber onde enfiar a cara. Eu fiz um juramento quando me formei e ainda lembrava as palavras, e aquilo era sério. Quase morri de vergonha e queria fazê-los parar de falar. Aquele não era só um pedido, era praticamente uma denúncia da falha do serviço da equipe. Ao menos era assim que eu ouvia.
Além disso, tinha um aspecto político e ideológico nisso, ou seja, o enfermeiro deveria ter percebido sozinho a necessidade de cuidar também dos presos, não deveria ser necessário um policial e nem a coordenadora da UBS apontarem. Mas foi assim que começou.
O trabalho em atenção básica não precisa se restringir ao básico. Ao falar em básico estou me referindo às ações programáticas orientadas pelo Ministério da Saúde, tais como Programa de acompanhamento de Pessoas com Hipertensão e Diabetes, Programa de Saúde da Criança, Pré-Natal e tudo que vem no pacote, o que já seria bom.
Se for possível considerar a maioria das equipes de ESF que conheci e conheço, como uma amostra da real situação delas em todo Brasil, creio que ainda não dá para dizer que temos atenção básica. Talvez o mais adequado seja chamá-las de…
De verdade não sei como nomear o que temos hoje. O que tenho certeza é que Atenção Básica, como descrita na Política Nacional, qualquer uma das versões, ainda não é. Temos uma coisa inominável onde é oferecido, quando dá, atendimento em demanda espontânea com queixa conduta, quer dizer: queixa, exames, encaminhamentos... E olhe lá, que já ouvi muitas histórias de profissionais que nem encaminhamento querem fazer, talvez para não se exporem.
Trabalhar (e viver) assim é um desperdício de recursos financeiros, de talentos e dos sonhos de construção de um mundo melhor que todo trabalhador da saúde tem, mesmo quando não quer se envolver.
Apenas com a graduação, sem nenhum tipo de especialização, (só entusiasmo, vontade e um livro e outro) já é possível fazer muita coisa.  Comprova isso o que acontecia nesta equipe que ousou atender na delegacia.
Logo depois de ouvir o Policial Militar e a Coordenadora da UBS, levei a demanda para equipe. A médica respirou fundo, não disfarçando o desgosto e saiu da sala. A Técnica de Enfermagem ficou com medo, a Assistente Social disse “tudo bem”, mas só foi uma vez. Os ACS se resignaram.
E foi assim que começou o atendimento da equipe na delegacia: com medo, receios e descrença de que aquilo valia à pena. Talvez se questionassem se presos eram merecedores de atenção, afinal de contas eram presos.
Na programação a ideia era atender os presos, em seguida os policiais e demais trabalhadores da delegacia e, no mesmo período, atender os Policiais Militares do pelotão destacado que ficava ali perto.
Os profissionais da delegacia, os trabalhadores, incluindo a secretária e os policiais militares em serviço na delegacia e os de serviço no Pelotão, quase sempre e em quase todas as vezes em que os atendíamos, estavam com a pressão arterial alta. Poucos admitiam ter hipertensão e os que reconheciam não faziam qualquer tipo de acompanhamento, não praticavam exercícios, não seguiam dietas e nem faziam uso regular de medicações.
Não foi de propósito, mas ao estender o atendimento dos presos para os policiais e trabalhadores, conseguimos fazer mais e melhor pelos presos e pelos trabalhadores. Aos olhos dos policiais deixamos de ser profissionais que atendiam bandidos e passamos a ser simplesmente o que já éramos: profissionais de saúde.
Digo que não foi de propósito porque essa era a conduta em outras agendas e programas. Quando fazíamos o atendimento da comunidade em uma escola, por exemplo, atendíamos as professoras e todos os outros trabalhadores da escola, inclusive os motoristas do transporte escolar. No entanto, é inegável que ao envolver todo o aparato de segurança, e não apenas os detidos, ganhamos a simpatia da maioria e conseguimos fazer mais, estabelecendo uma parceria que foi além dos atendimentos programados.
Conseguimos envolver os policiais em discussões sobre violência doméstica, violência na escola e apoio em campanhas de vacinação, prevenção ao alcoolismo, entre outras iniciativas que ora partia da secretaria de saúde, ora dos policiais.
O atendimento dos detentos foi importante também para equipe, que ao adentrar em um círculo cheio de preconceitos, pôde conhecer melhor as diversas facetas dos seres humanos, tanto dos detidos quanto dos policiais, e aproximar-se mais e melhor da verdadeira atitude que um profissional de saúde deve ter.
Ver, estar perto e conhecer a situação dos usuários presidiários foi o suficiente para começar a criar vínculos. O curioso é que o vínculo foi criado com a situação, com o programa de acompanhamento e não exatamente com os presos, uma vez que a rotatividade era muito grande e de um mês para o outro era comum não encontrar quase nenhuma cara conhecida.
Durante os dias que se seguiram passou a ser comum ouvir de diferentes colegas: “Não está no dia de ir à delegacia?”, ou “Hoje está tranquilo, vamos dar uma passada na delegacia”?
Essa atitude tão positiva da parte da equipe, creio, começou a ser gerada a partir do primeiro dia de atendimento, que foi mais ou menos assim:
O primeiro preso atendido foi um rapaz de 31 anos, nordestino de origem. Morava há mais de 10 anos no estado, sozinho, sem mãe, sem pai, esposa ou irmãos. Só tinha de seu a roupa do corpo, uma calça jeans rasgada e uma camiseta. Para conseguir lavar sua roupa precisava pedir emprestado um short e uma camiseta ao colega de cela. Até a escova e a pasta dental foi a assistente social da prefeitura quem conseguiu.
Não sabia o número de telefone de nenhum parente. Só do endereço da casa dos pais. Perguntado se queria enviar uma carta, disse não saber escrever.
Então, ele ditou a carta, a Assistente Social escreveu e colocou nos correios.
Antes de o atendimento terminar, ele pediu para cortar os cabelos.
O segundo preso era um rapaz de 19 anos, morador de outra cidade do estado. Saiu de casa aos 11 anos e nunca mais voltou. Sem contato com a família desde essa época. Não tinha o telefone da família e nem acreditava que seus pais queriam saber dele. Sabia o endereço de uma tia e como também não sabia escrever, ditou a carta.
Depois pediu roupas, toalha, sabonete, sabão, escova de dente e uma calça comprida para ir ao fórum depor.
Neste dia havia sete detidos. Não fiquei sabendo por que cada um estava preso. Achei melhor não perguntar e deixar por conta deles falar ou não.
Nesta primeira visita, as queixas não eram muitas: dores de cabeça e nas costas, pressão alta, alergias de pele, calor excessivo. Ouvimos muitas histórias, quase todas reveladoras de dramas familiares movidos à miséria e escolhas ruins.
Algumas queixas conseguimos atender: descobrimos que a comida servida, tanto aos presos quanto aos policiais, era muito salgada e tinha pouca verdura. E em uma conversa com as cozinheiras do restaurante que fornecia as marmitas, conseguimos resolver facilmente.
Os presos passavam muito tempo sem banho de sol e, em conversa com o delegado, ele se comprometeu a providenciar o banho de sol ao menos uma vez por semana. O ventilador estragado foi mandado consertar. Arrumamos um voluntário para cortar o cabelo dos presos. Em parceria com o policial que nos procurou, propomos que quem soubesse escrever pudesse ensinar quem não sabia. Toparam. Com o serviço social conseguimos cadernos, lápis, canetas e borrachas, além de material de higiene pessoal.
O que mais havia chamado atenção, nesta primeira visita, era o estado de miséria daqueles presos, talvez por isso alguns policiais se comoveram tanto a ponto de nos mobilizar (descobrimos depois que a iniciativa do Policial Militar que nos procurou não foi isolada, vários policiais se juntaram para pedir atenção para saúde dos presos, inclusive já tinham combinado com o delegado).
Sem exceção, todos os presos tinham histórias (às vezes não verbalizadas) de carência e de abandono. O garoto de 19 anos, que saíra de casa aos onze, contou que trabalhou em diversas fazendas, que muitas vezes o patrão nem pagava, só dava a marmita. Não conseguiu estudar e tinha o sonho de sair da cadeia, trabalhar e melhorar de vida. Será que conseguiu realizar seu sonho?
Não era possível acompanhar o que acontecia com as pessoas, cada vez que voltávamos à delegacia quase todos, que havíamos atendido no mês anterior,  já tinha sido substituídos, com exceção dos policiais civis e dos militares que moravam na cidade. Os presos ficavam pouco tempo ali, vinham de outras cidades da região, passavam pelo fórum, eram soltos ou voltavam para suas cidades de origem.
Particularmente acho que fazer a atenção básica ser mais do que ficar esperando doentes bater em sua porta ou simplesmente oferecer serviços burocratizados de prevenção de doenças não é tão dificil. Os  programas ofertados pelo Ministério da Saúde, e que devem ser implantados nas equipes de ESF são uma referência, não são limites, dá para fazer bem mais, basta querer, acreditar e se dispor a fazer.
 ― E você, acha o que?

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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