Ernande Valentin do Prado
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A Morte e a Vida - gustav klimt |
Bem antes da
existência das Equipes de Saúde da Família (ESF) voltadas para população
carcerária que existem hoje, a equipe na qual trabalhava fazia atendimentos
regulares na delegacia do município, que era uma comarca, e atendia presos de
outras cidades da região.
Essa agenda de
atendimento na delegacia iniciou-se a pedido de um soldado da Polícia Militar
(PM). Isso mesmo, a pedido de um policial militar, com farda e tudo.
Segundo ele, era
de cortar o coração ver aqueles “pobres coitados” jogados na cela sem atenção
de ninguém.
Em uma
quarta-feira, mais ou menos às dez horas, o soldado e a coordenadora da UBS,
conhecida dele, talvez da igreja, me abordaram no corredor. Lembro que os dois
estavam constrangidos, talvez com vergonha de pedir atenção para “presos”
diante da necessidade de tantas outras pessoas. Neste dia a UBS estava cheia, o
que deve ter contribuído para aumentar o constrangimento do pedido.
Perguntaram
baixinho, como quem tenta saber a opinião do outro antes de entrar no assunto.
Depois falaram das características dos presos, das doenças, das dores, da
necessidade de perdão.
Eu… eu ouvi com
vergonha. Não, não foi só vergonha. Fiquei me remoendo por dentro, sem saber
onde enfiar a cara. Eu fiz um juramento quando me formei e ainda lembrava as palavras,
e aquilo era sério. Quase morri de vergonha e queria fazê-los parar de falar.
Aquele não era só um pedido, era praticamente uma denúncia da falha do serviço
da equipe. Ao menos era assim que eu ouvia.
Além disso, tinha
um aspecto político e ideológico nisso, ou seja, o enfermeiro deveria ter
percebido sozinho a necessidade de cuidar também dos presos, não deveria ser
necessário um policial e nem a coordenadora da UBS apontarem. Mas foi assim que
começou.
O trabalho em
atenção básica não precisa se restringir ao básico. Ao falar em básico estou me
referindo às ações programáticas orientadas pelo Ministério da Saúde, tais como
Programa de acompanhamento de Pessoas com Hipertensão e Diabetes, Programa de
Saúde da Criança, Pré-Natal e tudo que vem no pacote, o que já seria bom.
Se for possível
considerar a maioria das equipes de ESF que conheci e conheço, como uma amostra
da real situação delas em todo Brasil, creio que ainda não dá para dizer que
temos atenção básica. Talvez o mais adequado seja chamá-las de…
De verdade não
sei como nomear o que temos hoje. O que tenho certeza é que Atenção Básica,
como descrita na Política Nacional, qualquer uma das versões, ainda não é.
Temos uma coisa inominável onde é oferecido, quando dá, atendimento em demanda
espontânea com queixa conduta, quer dizer: queixa, exames, encaminhamentos... E
olhe lá, que já ouvi muitas histórias de profissionais que nem encaminhamento
querem fazer, talvez para não se exporem.
Trabalhar (e
viver) assim é um desperdício de recursos financeiros, de talentos e dos sonhos
de construção de um mundo melhor que todo trabalhador da saúde tem, mesmo
quando não quer se envolver.
Apenas com a
graduação, sem nenhum tipo de especialização, (só entusiasmo, vontade e um
livro e outro) já é possível fazer muita coisa. Comprova isso o que
acontecia nesta equipe que ousou atender na delegacia.
Logo depois de
ouvir o Policial Militar e a Coordenadora da UBS, levei a demanda para equipe.
A médica respirou fundo, não disfarçando o desgosto e saiu da sala. A Técnica
de Enfermagem ficou com medo, a Assistente Social disse “tudo bem”, mas só foi
uma vez. Os ACS se resignaram.
E foi assim que
começou o atendimento da equipe na delegacia: com medo, receios e descrença de
que aquilo valia à pena. Talvez se questionassem se presos eram merecedores de
atenção, afinal de contas eram presos.
Na programação a
ideia era atender os presos, em seguida os policiais e demais trabalhadores da
delegacia e, no mesmo período, atender os Policiais Militares do pelotão
destacado que ficava ali perto.
Os profissionais
da delegacia, os trabalhadores, incluindo a secretária e os policiais militares
em serviço na delegacia e os de serviço no Pelotão, quase sempre e em quase
todas as vezes em que os atendíamos, estavam com a pressão arterial alta.
Poucos admitiam ter hipertensão e os que reconheciam não faziam qualquer tipo
de acompanhamento, não praticavam exercícios, não seguiam dietas e nem faziam
uso regular de medicações.
Não foi de
propósito, mas ao estender o atendimento dos presos para os policiais e
trabalhadores, conseguimos fazer mais e melhor pelos presos e pelos
trabalhadores. Aos olhos dos policiais deixamos de ser profissionais que
atendiam bandidos e passamos a ser simplesmente o que já éramos: profissionais
de saúde.
Digo que não foi
de propósito porque essa era a conduta em outras agendas e programas. Quando
fazíamos o atendimento da comunidade em uma escola, por exemplo, atendíamos as
professoras e todos os outros trabalhadores da escola, inclusive os motoristas
do transporte escolar. No entanto, é inegável que ao envolver todo o aparato de
segurança, e não apenas os detidos, ganhamos a simpatia da maioria e
conseguimos fazer mais, estabelecendo uma parceria que foi além dos
atendimentos programados.
Conseguimos
envolver os policiais em discussões sobre violência doméstica, violência na
escola e apoio em campanhas de vacinação, prevenção ao alcoolismo, entre outras
iniciativas que ora partia da secretaria de saúde, ora dos policiais.
O atendimento dos
detentos foi importante também para equipe, que ao adentrar em um círculo cheio
de preconceitos, pôde conhecer melhor as diversas facetas dos seres humanos,
tanto dos detidos quanto dos policiais, e aproximar-se mais e melhor da
verdadeira atitude que um profissional de saúde deve ter.
Ver, estar perto
e conhecer a situação dos usuários presidiários foi o suficiente para começar a
criar vínculos. O curioso é que o vínculo foi criado com a situação, com o
programa de acompanhamento e não exatamente com os presos, uma vez que a rotatividade
era muito grande e de um mês para o outro era comum não encontrar quase nenhuma
cara conhecida.
Durante os dias
que se seguiram passou a ser comum ouvir de diferentes colegas: “Não está no
dia de ir à delegacia?”, ou “Hoje está tranquilo, vamos dar uma passada na
delegacia”?
Essa atitude tão
positiva da parte da equipe, creio, começou a ser gerada a partir do primeiro
dia de atendimento, que foi mais ou menos assim:
O primeiro preso
atendido foi um rapaz de 31 anos, nordestino de origem. Morava há mais de 10
anos no estado, sozinho, sem mãe, sem pai, esposa ou irmãos. Só tinha de seu a
roupa do corpo, uma calça jeans rasgada e uma camiseta. Para conseguir lavar
sua roupa precisava pedir emprestado um short e uma camiseta ao colega de cela.
Até a escova e a pasta dental foi a assistente social da prefeitura quem
conseguiu.
Não sabia o
número de telefone de nenhum parente. Só do endereço da casa dos pais.
Perguntado se queria enviar uma carta, disse não saber escrever.
Então, ele ditou
a carta, a Assistente Social escreveu e colocou nos correios.
Antes de o
atendimento terminar, ele pediu para cortar os cabelos.
O segundo preso
era um rapaz de 19 anos, morador de outra cidade do estado. Saiu de casa aos 11
anos e nunca mais voltou. Sem contato com a família desde essa época. Não tinha
o telefone da família e nem acreditava que seus pais queriam saber dele. Sabia
o endereço de uma tia e como também não sabia escrever, ditou a carta.
Depois pediu
roupas, toalha, sabonete, sabão, escova de dente e uma calça comprida para ir
ao fórum depor.
Neste dia havia
sete detidos. Não fiquei sabendo por que cada um estava preso. Achei melhor não
perguntar e deixar por conta deles falar ou não.
Nesta primeira
visita, as queixas não eram muitas: dores de cabeça e nas costas, pressão alta,
alergias de pele, calor excessivo. Ouvimos muitas histórias, quase todas
reveladoras de dramas familiares movidos à miséria e escolhas ruins.
Algumas queixas
conseguimos atender: descobrimos que a comida servida, tanto aos presos quanto
aos policiais, era muito salgada e tinha pouca verdura. E em uma conversa com
as cozinheiras do restaurante que fornecia as marmitas, conseguimos resolver
facilmente.
Os presos
passavam muito tempo sem banho de sol e, em conversa com o delegado, ele se
comprometeu a providenciar o banho de sol ao menos uma vez por semana. O
ventilador estragado foi mandado consertar. Arrumamos um voluntário para cortar
o cabelo dos presos. Em parceria com o policial que nos procurou, propomos que
quem soubesse escrever pudesse ensinar quem não sabia. Toparam. Com o serviço
social conseguimos cadernos, lápis, canetas e borrachas, além de material de
higiene pessoal.
O que mais havia
chamado atenção, nesta primeira visita, era o estado de miséria daqueles
presos, talvez por isso alguns policiais se comoveram tanto a ponto de nos
mobilizar (descobrimos depois que a iniciativa do Policial Militar que nos
procurou não foi isolada, vários policiais se juntaram para pedir atenção para
saúde dos presos, inclusive já tinham combinado com o delegado).
Sem exceção,
todos os presos tinham histórias (às vezes não verbalizadas) de carência e de
abandono. O garoto de 19 anos, que saíra de casa aos onze, contou que trabalhou
em diversas fazendas, que muitas vezes o patrão nem pagava, só dava a marmita.
Não conseguiu estudar e tinha o sonho de sair da cadeia, trabalhar e melhorar
de vida. Será que conseguiu realizar seu sonho?
Não era possível
acompanhar o que acontecia com as pessoas, cada vez que voltávamos à delegacia
quase todos, que havíamos atendido no mês anterior, já tinha sido
substituídos, com exceção dos policiais civis e dos militares que moravam na
cidade. Os presos ficavam pouco tempo ali, vinham de outras cidades da região,
passavam pelo fórum, eram soltos ou voltavam para suas cidades de origem.
Particularmente
acho que fazer a atenção básica ser mais do que ficar esperando doentes bater em
sua porta ou simplesmente oferecer serviços burocratizados de prevenção de
doenças não é tão dificil. Os programas ofertados pelo Ministério da
Saúde, e que devem ser implantados nas equipes de ESF são uma referência, não
são limites, dá para fazer bem mais, basta querer, acreditar e se dispor a
fazer.
[Ernande Valentin do Prado publica no
Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
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