11 setembro 2018

BEM-AVENTURADOS OS QUE VELAM PELA ALEGRIA DO MUNDO


Maria Amélia Mano

Anjo da guarda trabalha em dia de Jogo do Brasil na Copa. Enquanto coça a asa, ouve Caetano, segreda, assunta, sussurra, vela no inverno, no inferno da cidade.

Mulher jovem de olhar perdido, corpo emagrecido, encurvado como galho de árvore caído no chão. Pensar que ela já foi um bebê, diz colega. E divago no que um dia foi a jovem-velha. Mesmo pobre, mesmo não desejada, mesmo abandonada, mesmo não amada, ela era início e todo início é possibilidade. Mas tudo é muito mais.

No sinal, são tantas vezes gestos naturais: homem faz malabarismos e se aproxima do táxi onde estou. Na face, escavações profundas como cânions e os pingos da chuva formando rios nas rugas, cachoeiras em marcas, bicas em cicatrizes, corredeiras em pele judiada. E pensar que ele já foi um bebê, digo. Taxista suspira e dá uns trocos ao homem.

E o anjo de plantão em ponto facultativo continua soprando verdade simples. Com sentido de dever cumprido, pensa: valeu. Valeu conversa, sinaleira, compaixão, essa crônica, valeu. Sabe-se lá o que valerá, o que se fará, o que será, que será, que será, sempre que pensarmos que alguém muito abandonado no mundo já foi um bebê. Se nos comovermos mais com os começos, pela ternura, do que com o fim, pelo medo.

Enquanto os homens exercem seus podres poderes, toca hino nacional, anjo esforçado vela pelos que vivem sós, pelos que morrem sós. São Pedro deu conselho: vê jogo, come pipoca, limpa asa. Só que não. O anjo CDF resgata lembrança que se perdeu em esquinas, cruzamentos, vias-vidas essas, cheias de curvas mal sinalizadas.

Cobertor cinza esfarrapado embrulha homem debaixo da marquise, maluco do terminal de ônibus junta copos do McDonalds pra semear lavoura imaginária, maltrapilho busca comida na oferenda na encruzilhada, morrer e matar de fome, de raiva e de sede, senhora com Bíblia grita na praça: bem-aventurados alguma coisa que não entendo.

Bem-aventurados os bebês que todos foram, que se foram nos tempos, que envelheceram cedo nas ausências, nas sarjetas, nas frestas entre os paralelepípedos das ruas, no buraco no asfalto, no peito, no ranger de dentes e dobradiças de portas fechadas, tantas portas fechadas. Nos pantanais, nas cidades, caatingas e nos gerais.

Sacada genial desse anjo caxias que nos salva, quem sabe, dessas trevas e nada mais. Anjo que chega no fim do turno cansado, apaga estrela e desaba na nuvem em sono profundo. Vai pedir pra mudar de escala: velar festa, só alegria. Caetano, só se for menina do anel, de lua e estrela. Se não der, vai pedir aumento, insalubridade e periculosidade pro RH do céu, que gente humana cansa.

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