Maria Amélia Mano
Anjo da
guarda trabalha em dia de Jogo do Brasil na Copa. Enquanto coça a asa, ouve
Caetano, segreda, assunta, sussurra, vela no inverno, no inferno da cidade.
Mulher jovem
de olhar perdido, corpo emagrecido, encurvado como galho de árvore caído no
chão. Pensar que ela já foi um bebê, diz
colega. E divago no que um dia foi a jovem-velha. Mesmo pobre, mesmo não
desejada, mesmo abandonada, mesmo não amada, ela era início e todo início é possibilidade.
Mas tudo é muito mais.
No sinal,
são tantas vezes gestos naturais: homem faz malabarismos e se aproxima do táxi
onde estou. Na face, escavações profundas como cânions e os pingos da chuva
formando rios nas rugas, cachoeiras em marcas, bicas em cicatrizes, corredeiras
em pele judiada. E pensar que ele já foi um bebê, digo. Taxista suspira e dá
uns trocos ao homem.
E o anjo de plantão em
ponto facultativo continua soprando verdade simples. Com sentido de dever
cumprido, pensa: valeu. Valeu conversa, sinaleira, compaixão, essa crônica,
valeu. Sabe-se lá o que valerá, o que se fará, o que será, que será, que será, sempre
que pensarmos que alguém muito abandonado no mundo já foi um bebê. Se nos
comovermos mais com os começos, pela ternura, do que com o fim, pelo medo.
Enquanto os homens
exercem seus podres poderes, toca hino nacional, anjo esforçado vela pelos que vivem
sós, pelos que morrem sós. São Pedro deu conselho: vê jogo, come pipoca, limpa
asa. Só que não. O anjo CDF resgata lembrança que se perdeu em esquinas,
cruzamentos, vias-vidas essas, cheias de curvas mal sinalizadas.
Cobertor cinza
esfarrapado embrulha homem debaixo da marquise, maluco do terminal de ônibus
junta copos do McDonalds pra semear lavoura imaginária, maltrapilho busca comida na
oferenda na encruzilhada, morrer e matar de fome, de raiva e de sede, senhora com
Bíblia grita na praça: bem-aventurados alguma coisa que não entendo.
Bem-aventurados os bebês
que todos foram, que se foram nos tempos, que envelheceram cedo nas ausências, nas
sarjetas, nas frestas entre os paralelepípedos das ruas, no buraco no asfalto, no
peito, no ranger de dentes e dobradiças de portas fechadas, tantas portas
fechadas. Nos pantanais, nas cidades, caatingas e nos gerais.
Sacada genial desse anjo caxias
que nos salva, quem sabe, dessas trevas e nada mais. Anjo que chega no fim do
turno cansado, apaga estrela e desaba na nuvem em sono profundo. Vai pedir pra
mudar de escala: velar festa, só alegria. Caetano, só se for menina do anel, de
lua e estrela. Se não der, vai pedir aumento, insalubridade e periculosidade
pro RH do céu, que gente humana cansa.
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