Maria Amélia Mano
Esses dias tão intensos de idas e mais idas,
voltas e revoltas. Casa de passagem, em trabalho. Do segundo piso, olho o
quintal do vizinho lá embaixo. Penso nessa vida, nessas viagens, lembranças.
O homem limpando a gaiola do canário de manhã.
O homem mais preso e solitário que o canário. Homem e canário sabem disso, por
isso o canário não foge quando tem oportunidade. Parece que está tudo bem
assim, conformados. Ninguém está autorizado a voar.
O cachorro que segue os que saem da rodoviária
do interior, passantes carentes de lugar, de parada, com excesso de caminho.
Uma mulher que chega de qualquer destino e não tem ninguém esperando. Outra,
chora em um canto, após um ônibus sair. Silêncio dos que se acalmam, dos que
esperam, dos que se despedem. O cachorro é o único que busca.
A faxineira limpando o imenso corredor do
prédio. O último operário a bater o cartão na madrugada fria. Os dois sentam
lado a lado no ônibus e cochilam juntos, sem se conhecerem. Sobreviventes, não
comemoram o retorno. A única alegria é a de sair e, à vezes, chegar.
O cochilo instantâneo do motorista de ônibus e
o medo, quando percebe, ao acordar, do que poderia ter sido. Porque o ônibus
está lotado de trabalhadores. Porque, de repente, vê vida em um cochilo. Vida
vista nos cabelos grisalhos no espelho. Tempo que passou rápido na estrada.
Tempo que está passando. Essencial é manter os olhos abertos. O resto a estrada
engole.
Um vendedor no meio da rua, dos carros, no
sinal, oferece panos de prato pintados à mão, pela esposa. Cinco por dez reais.
A esposa, em casa, terminando a vigésima peça de roupa, todas iguais. Amanhã,
serão outras vinte peças. Todas iguais as de hoje, todas iguais as de ontem.
Orgulho de manter o padrão, a qualidade, a repetição.
O músico cantando sozinho em um bar onde
ninguém presta atenção e um velhinho recolhendo as latinhas de cerveja do lixo.
No mesmo bar, um homem aguardando
um telefonema que ainda não veio. Que não virá, ele sabe que não virá. O homem,
o músico e o velhinho sabem: não virá. Mas ninguém diz e o silêncio é um pacto
da noite.
O travesseiro solto no lado da cama, a cadeira
vazia na mesa, chegar na casa de infância e ela ser outra, de outros donos, com
outras histórias.
A sala de espera de um consultório médico onde
se aguarda um resultado importante, definitivo. Quando se olha o mundo pela
primeira vez e o último olhar, quando nem se sabe que é o último.
Mas de todos os
medos e injustiças, ainda, hoje, na minha lembrança, ficam as grandes solidões.
Coisas de meus tempos, daqui, desde o segundo andar. Das solidões, de todas elas, as ditas e não ditas,
vistas e invisíveis, a mais sentida é a deste quintal de velhinhos que espio: o
balanço vazio, esse que sequer tem marca de pés na terra onde está suspenso.
Diferente das desistências, do homem e seu canário,
das mulheres na rodoviária, dos homens no bar, do trabalho árduo, do sono de
viagem e cansaço, do medo de morrer, dos lugares vazios conformados, repetidos,
esse balanço pede socorro, essa madeira morta e esquecida, palco de
gargalhadas, me pede, de longe, por todos, por todas, para voar.
P.S.: texto publicado na revista Arcimboldo
P.S.: texto publicado na revista Arcimboldo
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