15 janeiro 2019

QUINTAL DE VIAGEM


Maria Amélia Mano

Esses dias tão intensos de idas e mais idas, voltas e revoltas. Casa de passagem, em trabalho. Do segundo piso, olho o quintal do vizinho lá embaixo. Penso nessa vida, nessas viagens, lembranças.

O homem limpando a gaiola do canário de manhã. O homem mais preso e solitário que o canário. Homem e canário sabem disso, por isso o canário não foge quando tem oportunidade. Parece que está tudo bem assim, conformados. Ninguém está autorizado a voar.

O cachorro que segue os que saem da rodoviária do interior, passantes carentes de lugar, de parada, com excesso de caminho. Uma mulher que chega de qualquer destino e não tem ninguém esperando. Outra, chora em um canto, após um ônibus sair. Silêncio dos que se acalmam, dos que esperam, dos que se despedem. O cachorro é o único que busca.

A faxineira limpando o imenso corredor do prédio. O último operário a bater o cartão na madrugada fria. Os dois sentam lado a lado no ônibus e cochilam juntos, sem se conhecerem. Sobreviventes, não comemoram o retorno. A única alegria é a de sair e, à vezes,  chegar.

O cochilo instantâneo do motorista de ônibus e o medo, quando percebe, ao acordar, do que poderia ter sido. Porque o ônibus está lotado de trabalhadores. Porque, de repente, vê vida em um cochilo. Vida vista nos cabelos grisalhos no espelho. Tempo que passou rápido na estrada. Tempo que está passando. Essencial é manter os olhos abertos. O resto a estrada engole. 

Um vendedor no meio da rua, dos carros, no sinal, oferece panos de prato pintados à mão, pela esposa. Cinco por dez reais. A esposa, em casa, terminando a vigésima peça de roupa, todas iguais. Amanhã, serão outras vinte peças. Todas iguais as de hoje, todas iguais as de ontem. Orgulho de manter o padrão, a qualidade, a repetição.

O músico cantando sozinho em um bar onde ninguém presta atenção e um velhinho recolhendo as latinhas de cerveja do lixo. No mesmo bar, um homem aguardando um telefonema que ainda não veio. Que não virá, ele sabe que não virá. O homem, o músico e o velhinho sabem: não virá. Mas ninguém diz e o silêncio é um pacto da noite.

O travesseiro solto no lado da cama, a cadeira vazia na mesa, chegar na casa de infância e ela ser outra, de outros donos, com outras histórias. 

       A sala de espera de um consultório médico onde se aguarda um resultado importante, definitivo. Quando se olha o mundo pela primeira vez e o último olhar, quando nem se sabe que é o último.


           Mas de todos os medos e injustiças, ainda, hoje, na minha lembrança, ficam as grandes solidões. Coisas de meus tempos, daqui, desde o segundo andar. Das solidões, de todas elas, as ditas e não ditas, vistas e invisíveis, a mais sentida é a deste quintal de velhinhos que espio: o balanço vazio, esse que sequer tem marca de pés na terra onde está suspenso.

Diferente das desistências, do homem e seu canário, das mulheres na rodoviária, dos homens no bar, do trabalho árduo, do sono de viagem e cansaço, do medo de morrer, dos lugares vazios conformados, repetidos, esse balanço pede socorro, essa madeira morta e esquecida, palco de gargalhadas, me pede, de longe, por todos, por todas, para voar.



P.S.: texto publicado na revista Arcimboldo

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O que tem a dizer sobre essa postagem?

Postagem mais recente no blog

QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?

                ? QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?   Camila chegou de mansinho, magra, esfaimada, um tanto abatida e cabisbaixa. Parecia est...

Postagens mais visitadas no blog