01 janeiro 2019

SIMPLES E SAGRADA


Maria Amélia Mano

   
Porto Alegre, solstício de verão, última lua crescente cheiando de 2018

Em uma noite mágica, primitiva e ancestral, na beira da fogueira, uma mulher chama a neta e, apontando pra lua, escolhe uma semente e para ela dá nome, pela primeira vez.

Mulher e menina dormem juntas, no calor do fogo, em um tempo em que não existiam todas as estrelas do céu, nem mesmo o nome dos mundos, sequer as palavras, muito menos a poesia.

Para os índios mexicanos, a semente encantada veio das mãos do “Senhor Amado”. Os índios norte-americanos diziam que nela, havia o espírito do sangue da sábia mulher dos grãos. E os guaranis ensinam que é preciso levá-la no coração, andando e rezando.

Mais que isso, é preciso semeá-la na primavera pra colhê-la no inverno. Ela nasce no solo mais pobre e cresce e alimenta animais, homens, mulheres, filhos e filhas, netos e netas, gerações, desde antes daquela que, na fogueira na noite, ensinou menina nome e cuidado com terra que é mãe.

Quais sementes plantamos? Que plantas deixamos crescer? Qual a nossa arte?

O que eu sei é pouco diante de um infinito de ciclos de luas, marés e colheitas. Mas sei um pouco de mim e desse meu tempo. Sei de um inverno, lua minguante, quando senti medo e dor em algum escuro de olhos que adoeceram. Sei da semana que passou, primavera, temporal, lua crescente, fim de tarde e de dia de ofício.

Nesses meus dois momentos de 2018, intensidade e cotidiano, lá estava ele, saboroso, dourado, simples, feito desse grão mágico por mão de mulher sagrada que sonhou ser mãe de menina, avó, um dia, como a ancestral da fogueira. Às vezes, com casquinha queimadinha, essas fatias, guardadas pra mim, têm sabor de carinho no cansaço, no cuidado e na partilha. Sempre serei grata.


Bolo de milho da Zane

Inspiração: Carlos Rodrigues Brandão e sobretudo, Zane, técnica de enfermagem da unidade de saúde em que trabalho.

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