Maria Amélia Mano
É nove horas da manhã, hora oficial de
Quixeramobim, Quixadá, Iguatu e Barbalha, e sei que ela esteve aqui. Sei pela
porta do banheiro aberta, o copo de água na mesa, a toalha de banho pendurada
no lugar errado. Confesso que fiz injustiça com a colher suja na pia: achei que
fosse dela, a caçula, a que demorou a crescer. Mas vi que estava suja de
geleia, então só pode ser minha. Sim, eu como geleia de colher, como se fosse
doce de leite.
É onze horas da manhã, hora oficial de Quixadá,
Baturité e Granja, e sei que ela esteve aqui. Sei pela cama feita, mais água na
geladeira, louça limpa, roupas dobradas na beira da cama. Confesso que arrumo
mais a casa pra receber ela que repara nos detalhes e sugere melhorias. Ela, a
do meio, a segunda depois de mim, a que ficou adulta antes de mim e tomou meu
lugar de inaugurar as coisas mais especiais – menos a de sair de casa primeiro.
Também, o que esperar de alguém que come geleia de colher?
É nove horas da noite e o domingo passou rápido, o
dia, o tempo, os anos. Passou rápido. Às vezes, sinto falta das marcas que elas
deixam, das coisas feitas e desfeitas. Cada uma delas. Quem sabe se eu inventar
mentiras de novo pra prestarem atenção em mim. Quem sabe se a gente mudar as
letras das músicas, de novo, compor uma canção de amor para gravar um disco
voador, lançar no espaço sideral, tocar na velha vitrola amarela Philips. De
repente, estamos de mãos dadas, perto, ciranda. Vamos!
Vamos pegar nossas bicicletas e pedalar contra o
vento naqueles lugares proibidos. Sim, ainda não digam nada. Continua segredo
nosso. Aquela rampa da estação ferroviária, a ponte para o bairro novo, o
matagal, a pista de asfalto perigosíssima,
a ladeira em que a gente se espalhava, acelerando. Vamos comer arroz com
sardinha, agora, com tomate cereja pra ficar mais adulto e chique, quase
gourmet. Já experimentei, fica bom e dá pra comer geleia de sobremesa.
Vamos dormir todas juntas no banco de trás da
Brasília do pai, cobertas de colcha de retalhos feita pela mãe. Vamos olhar as
luzes que passam na janela, rápidas e falar das nossas paixões, baixinho. Sim, sigam
não dizendo nada. Mais um segredo nosso. Também continuo a mais boba nisso de
se apaixonar. Minha paixão há de brilhar na noite, no céu de uma cidade do
interior, de todas as cidades que moramos. E vamos brincar nas calçadas, nos
parques, nas praças, na praia, catar conchas e fazer colar.
É onze horas da noite, hora oficial de Porto Alegre,
Pelotas e Jaraguá do Sul. Logo é segunda. Não estou mais em roda gigante, nem
em balanço: acordo, pena. As marcas delas na minha casa, as marcas delas na
minha alma-memória, na minha vida. Melhor não lavar louça, melhor pensar em uma
canção que a gente mude a letra, quando a gente se encontrar. Quem sabe um Reggaeton
que tá na moda, que nem tomate cereja.
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