12 fevereiro 2019

EU VOU FAZER UMA CANÇÃO PRA ELAS


Maria Amélia Mano

É nove horas da manhã, hora oficial de Quixeramobim, Quixadá, Iguatu e Barbalha, e sei que ela esteve aqui. Sei pela porta do banheiro aberta, o copo de água na mesa, a toalha de banho pendurada no lugar errado. Confesso que fiz injustiça com a colher suja na pia: achei que fosse dela, a caçula, a que demorou a crescer. Mas vi que estava suja de geleia, então só pode ser minha. Sim, eu como geleia de colher, como se fosse doce de leite.

É onze horas da manhã, hora oficial de Quixadá, Baturité e Granja, e sei que ela esteve aqui. Sei pela cama feita, mais água na geladeira, louça limpa, roupas dobradas na beira da cama. Confesso que arrumo mais a casa pra receber ela que repara nos detalhes e sugere melhorias. Ela, a do meio, a segunda depois de mim, a que ficou adulta antes de mim e tomou meu lugar de inaugurar as coisas mais especiais – menos a de sair de casa primeiro. Também, o que esperar de alguém que come geleia de colher?

É nove horas da noite e o domingo passou rápido, o dia, o tempo, os anos. Passou rápido. Às vezes, sinto falta das marcas que elas deixam, das coisas feitas e desfeitas. Cada uma delas. Quem sabe se eu inventar mentiras de novo pra prestarem atenção em mim. Quem sabe se a gente mudar as letras das músicas, de novo, compor uma canção de amor para gravar um disco voador, lançar no espaço sideral, tocar na velha vitrola amarela Philips. De repente, estamos de mãos dadas, perto, ciranda. Vamos!

Vamos pegar nossas bicicletas e pedalar contra o vento naqueles lugares proibidos. Sim, ainda não digam nada. Continua segredo nosso. Aquela rampa da estação ferroviária, a ponte para o bairro novo, o matagal, a pista de asfalto perigosíssima, a ladeira em que a gente se espalhava, acelerando. Vamos comer arroz com sardinha, agora, com tomate cereja pra ficar mais adulto e chique, quase gourmet. Já experimentei, fica bom e dá pra comer geleia de sobremesa.

Vamos dormir todas juntas no banco de trás da Brasília do pai, cobertas de colcha de retalhos feita pela mãe. Vamos olhar as luzes que passam na janela, rápidas e falar das nossas paixões, baixinho. Sim, sigam não dizendo nada. Mais um segredo nosso. Também continuo a mais boba nisso de se apaixonar. Minha paixão há de brilhar na noite, no céu de uma cidade do interior, de todas as cidades que moramos. E vamos brincar nas calçadas, nos parques, nas praças, na praia, catar conchas e fazer colar.

É onze horas da noite, hora oficial de Porto Alegre, Pelotas e Jaraguá do Sul. Logo é segunda. Não estou mais em roda gigante, nem em balanço: acordo, pena. As marcas delas na minha casa, as marcas delas na minha alma-memória, na minha vida. Melhor não lavar louça, melhor pensar em uma canção que a gente mude a letra, quando a gente se encontrar. Quem sabe um Reggaeton que tá na moda, que nem tomate cereja.


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