20 abril 2019

A MÚSICA COMO ORAÇÃO



Maria Emília Bottini


Envelhecer faz parte do desenvolvimento de algumas pessoas, já outras partem em tenra idade. O corpo perde sua vitalidade, os cabelos embranquecem, o caminhar é mais lento. É uma ilusão achar que esta fase é a melhor idade, pois com o declínio do corpo, também a memória é invadida pelo esquecimento e as repetições e confabulações são comuns.

Segundo Rita Lee, em uma entrevista, comenta que “envelhecer não é para maricas”, no que concordo plenamente. É preciso uma dose de abandono do narciso para adaptar-se às mudanças que surgem. Muitos idosos, num país como o nosso, enfrentam o envelhecer do corpo e da alma de forma sofrível, acompanhado de doenças físicas e emocionais. A solidão e o abandono também os acompanham.
Numa tarde fria de agosto assisti ao belo filme britânico, baseado no livro de Alan Bennett, A senhora da van (2015) do diretor Nicholas Hytner. A narrativa fílmica trata da relação de amizade entre Alan Bennett, escritor e dramaturgo inglês, com a excêntrica idosa Mary Shepherd que vivia em sua van estacionada na rua em frente à sua casa, no bairro de Camden Town, em Londres.
Os vizinhos, incomodados com a presença da velha senhora, conseguem autorização para nenhum carro permanecer estacionado na rua. Alan convida a Sra. Shepherd a estacionar seu veículo amarelo em seu pátio e essa relação se prolonga por longos quinze anos até sua morte. Alan transformou a história em peça de teatro com grande sucesso e recentemente roteirizou para o cinema.
Sra. Shepherd vive sua vida da forma que lhe convêm, mas isso incomoda os vizinhos da rua. Ela tem hábitos de higiene pouco convencionais, mais que isso, ela é uma idosa solitária e sem referências afetivas. Alan lhe faz perguntas e quase nunca obtêm respostas, com isso, ficamos como espectadores sem saber o que essa senhora esconde em seu passado. Ela é um tanto agressiva o que torna a relação distante e difícil, muitas vezes.
A amizade aos poucos acontece na tolerância de Alan. Ele ajuda a seu modo cometido a senhora que tem problemas mentais e vive entre seus parcos pertences, com a memória povoada de fatos passados a lhe torturar, sentindo culpa e arrependimento.
Quase no final do filme a história se revela: Sra. Shepherd foi uma pianista de grande talento, tentou virar freira e a igreja lhe podou o talento e a vida. Em sua ingenuidade comenta com o confessor que lhe “era mais fácil tocar, que rezar”. Ao retirar a música, retira-se a oração de sua vida e isso lhe causou sofrimento emocional imenso.
A igreja, ao retirar-lhe a música, a pune com a impossibilidade de viver de forma sadia. Ao proibir seu talento lhe é tolhida a vida e a possibilidade de existir; a doença mental se tornou o caminho, sendo internada em clínica psiquiátrica por algumas vezes. A culpa é sua companhia, a música lhe causa rejeição que a faz tapar os ouvidos. Ela acredita ter atropelado um motociclista e troca de lugar constantemente, por medo de ser presa.
Esse filme é simples do ponto de vista cinematográfico, recebeu algumas críticas negativas por ser lento e moroso. Talvez eu concorde com as críticas, mas o filme é mais que os aspectos cinematográficos é também sua história e o que pretende tocar e contar. Nesse caso, o envelhecimento, a doença mental em idoso, o abandono familiar e a amizade inusitada entre um intelectual e uma moradora de rua.
A narrativa do filme precisa de compasso lento para tocar pontos delicados da vida desses personagens que emocionam pela complexidade da vida.


[Maria Emília Bottini publica no Rua Balsa das 10 aos Sábados]




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