30 abril 2019

ARQUIVO MORTO


Maria Amélia Mano

O problema todo da vida que vivia, ele tinha certeza, estava na mãe morta tão cedo e o arquivo morto da repartição. Lá, onde estavam os prontuários excluídos, os processos perdidos, os documentos extraviados, vencidos, amarelados.

Ninguém mais procurava por esses papeis que insistiam em ficar e existir. Há anos, ali, por segurança, pela lei, porque pode ser que um dia, alguém perguntasse. E aí, alguém teria de responder. E aí alguém poderia ser processado.

E assim, por medo dos outros de processo por lixo, ele tinha que guardar o que sequer as traças comiam. Ele tinha que proteger uma resposta para uma suposta e incerta pergunta. Ofício relevante e medíocre, pensava ele enquanto espanava estantes.

Mas eis que chegam notícias boas, esperanças. Boates com jovens queimam, museus queimam, igrejas queimam, alojamento de meninos queimam. Tudo, por fim, há de queimar, um dia. Como a carta, a carne, a pele, o tempo. E o tempo passava. E ele passou a desejar.

Desejava o incêndio. Tinha certeza de que queimaria. Tinha expectativa de que queimaria como uma imensa fogueira de festa de interior. E devia ser logo, enquanto tivesse tempo pra viver. Enquanto a poeira estivesse só poeira e não lama tóxica, lava fervente.

Poeira. Isso que termina com pulmões e almas. Arquivos mortos. Tempo passando, desespero, saudades da mãe. Foi quando resolveu sem dó e sem medo. Pesquisou faísca fina e discreta, curto-circuito e assim foi. Foi durante a noite e na madrugada, ele assistiu tudo pela televisão, no sofá da sala.

Cada labareda queimava uma raiva, cada chama, uma angústia e as mangueiras dos bombeiros eram ameaças leves. Não deviam ser suficientes para tanto papel, tanto medo, tanto tempo inútil. Fazia frio e ele vestia pijamas de flanela e tomava um vinho tinto guardado pra momentos especiais.

Momentos aqueles, quando sonhava, nas noites escuras e solitárias de passeios assustadores entre corredores, estantes, pastas e clipes de alumínio. Ele se via longe, tocando piano em lugar de ar limpo, puro. Uma música sem partitura. Lady Laura do Roberto Carlos, de ouvido.

Enquanto tudo queimava no noticiário da madrugada fria, ele dormia na poltrona, sorrindo, cantando, sonhando: só queria ouvir sua voz, me dizendo sorrindo, aproveite o seu tempo, você ainda é um menino.

Um comentário:

  1. tenho pensado como minha alma queima todos os dias... um dia quero pensar que vou ficar só queimando de alegria!

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