Maria Amélia Mano
Ela desmarcou aquelas
partes mais belas do livro de contos e jogou fora a terra dos cactos mortos. Ela
se perdeu. Quis coisas pequeninas de noite: mini-ikebanas e hai kais. Quis
coisas grandes de manhã: um baobá no jardim, a esquadrilha da fumaça desenhando
o próprio nome no céu. O rastro junto às nuvens que formasse coordenadas de um mapa
secreto como em filmes de Indiana Jones ou Simbad. Um mapa para algum lugar
quente e bom onde ela sentisse paz e alívio. Sim, ela teve cólera e cólica,
pediu colo e conforto, cafuné. Quis silêncio e soluço. Teve dor de morte, mas teve
dor de parto que nascer também tem sua dor. Pra esse sofrer não havia remédio
de tirar razão e coração, não havia anestésico de alma, não havia sonífero,
morfina. Receituário de qualquer cor pra qualquer dor. Era um dia depois do outro...
Ela pediu pra voltar para
o começo quando o sol entre as folhas das árvores desenhava sombras
fantásticas de um par no chão. Mas o dia nublou e ela só pediu pra mudar de
rua, de rumo, de bússola, de erro, de pele, de asa, de medo, de casca, de
carne, mudar de sorte, de seiva, de sabor, de susto e de sustento, de alimento,
de vida. Tudo com a urgência do motoboy que ultrapassa o sinal vermelho, sempre
atrasado. Mas sabe que não é possível esse tempo e até se conforma com a fala
doce de Paulinho da Viola e uma canção de Caymmi, vagarosa como cicatriz que,
por fim, conta a história de algum infinito perdido na ausência. Ou somente conta
da passagem por um arame farpado, caco de vidro, lâmina, corte, rasgo, o
dilacerado, o sangue e a sutura e os analgésicos. Era um dia depois do outro, depois do outro...
Ela rasgou a lembrança do
olhar que tinha em pedacinhos. Quis dar para os peixes. Quis fazer confete pra
fevereiro. Quis molhar e amassar com cola e fazer escultura. Quis atirar em
fogueira e fazer feitiço com tambores e cantos em lua vermelha. Por um segundo,
pensou em rejuntar, com durex, mas nada seria como antes. Então, quis sortear e
guardar só o que caísse na palma da mão: a falta da lágrima, a pergunta, a
resposta, o silêncio, a ruga do canto do olho, o vazio, o mistério, o descuido
ou só um cílio. Metade de um cílio bastava e talvez fosse o melhor que ela pudesse
ter, como prova de crime. Ia guardar dentro de um livro de poesia junto com as
folhas de março, outono, DNA pra se refazer no futuro, quando menos ferida, ela
quisesse, então, se reencontrar. Era um dia depois do outro, depois do outro, depois do outro...
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