11 maio 2019

CINZAS DA DOR




Maria Emília Bottini

Trabalhei por muito tempo com vítimas de violência sexual e doméstica. Cruzaram meu caminho muitas meninas e mulheres sucumbidas, amassadas pela tragédia de serem violentadas em seu corpo, em sua alma feminina.
Lembro com certa frequência de uma menina de cinco anos que atendi no interior de Rio Grande do Sul, que no atendimento relatava: “tia ele fez judiaria comigo”. A violência neste caso foi do tio de quinze anos, que ao praticar a violência o fazia junto com seu irmão de seis anos. Ambos ficaram em minhas memórias e nunca dela se afastaram.
Cruzei dia desses com uma bela mulher com quem convivi por um breve tempo, diria até que este tempo foi atemporal. Sempre que nos encontrávamos nossas conversas eram regadas a arte de fiar o tempo. Em nosso último encontro afirmou que em minha atitude secreta de ajudá-la a havia ajudado muito. Nunca sabemos o quanto ajudamos quando resolvermos ouvir alguém. Não sabemos por que somos escolhidos para sermos depositários das memórias da dor. Isso não se dá por acaso na minha concepção, algo me foi deixado naqueles encontros.
Em um desses encontros contou-me da violência sexual sofrida na infância por um membro de sua família, precisamente por seu irmão. Filha de uma prole enorme, algumas barreiras foram rompidas e algo dentro dela se quebrou ao sentir, em tenra idade, que família pode ser algo muito perigoso.
A menina cresceu e fez escolhas por caminhos nem sempre curtos e fáceis, mas sim longos e difíceis, acreditando no sono eterno como solução para seu sofrimento emocional, mas dele foi acordada pelo tratamento psicológico.
A sua narrativa só confirma as estatísticas sobre as violências enfrentadas por crianças do Brasil em que seus violentadores estão próximos, muitas vezes dentro da própria casa, o que dificulta denúncias pelo medo e ameaças feitas pelos abusadores.
Relatou-me uma vivência em sua terapia individual em que sua psicóloga lhe entrega um saco de argila para trabalhar a violência sofrida. No início apenas observa a argila e por ela é observada. Não sabia o que fazer com ela. Silenciosamente pensa, e aos poucos suas mãos magras se juntam ao barro, a terra, ao movimento de mexer e se deixar levar para o encontro do que a faz sofrer e deseja desprender-se de viver.
Mãos, barro e pensamentos guardados num templo de dor, de raiva, de tristeza aos poucos são transformados e tomam formas. Diante do movimento do amassar, fazer e desfazer diante de si surge um homem, que o deixa de lado. Suas mãos seguem a mexer o barro conduzido pelo inconsciente. O barro transforma-se em um automóvel grande mais se parece com um trator. Em movimentos rápidos o trator passa várias vezes por cima do homem-irmão. Matando-o, destruindo-o, voltando à condição de barro, de terra.
O homem é seu irmão, mas o trator é ela dessa vez empoderada, com forças renovadas pela mulher que se tornou agora e consegue enfrentar o homem-irmão. Ela é vencedora nesta luta, porque agora é dona de seu corpo. Aos sete anos, a menina dentro dela, não conseguiu defender-se.
Ao finalizar a ação-destruição refere que se sentiu bem, simbolicamente matando o violentador de sua meninice, desmancha de alguma forma o que está dentro de si colocando diante dos olhos, amassando o passado que ainda dói. Confesso que ouvindo a história senti certo encanto pelo entendimento construído pela mulher adulta resgatando sua força, sua potência, sua feminilidade. Demarcando um novo tempo em seu existir como mulher.
Após essa atividade sua psicóloga solicita que junte os objetos e produza algo novo. As mãos a mexer e remexer o barro, já não são mais trator e homem-irmão, tornam-se outra coisa, hora é uma casa que se desfaz, hora borboleta com asas longas, mas em definitivo um jarro é talhado. Um jarro grande e bonito. Jarros são geralmente usados para colocar água que simboliza a origem da vida, a fecundidade, a fertilidade, a transformação, a purificação, a força, a limpeza. Esse objeto tem um espaço vazio, representa o novo criado para colocar novas experiências e novas formas de interpretar e resignificar o vivido.
Meses se passam após aquela sessão e decide escrever. Suas palavras brotam entre lágrimas. Leva para a sessão de terapia sua escrita da dor; ao ler chora compulsivamente suas recordações de menina que cresceu com medo de homens.
Sua psicóloga questiona o que deseja fazer com o texto, afirma que deseja rasgar e assim o faz. A psicóloga apanha na estante o jarro que recebe os pedaços rasgados e após depositar os papéis, pergunta se poderia atear fogo. Silenciosamente vê a combustão acontecendo consumindo o papel, a violência, a dor, em alguns minutos tudo isso é transformado em cinzas. Simbolicamente o fogo queima mais que os papeis com escrita da violência sofrida, queima a memória do vivido.
Lembrei-me da Fênix da mitologia grega, pássaro que quando morria, entrava em autocombustão, passado algum tempo renascia das próprias cinzas, podendo se transformar em uma ave de fogo. Outra característica da Fênix é sua força que a faz transportar em voo cargas muito pesadas, há lendas nas quais chega a carregar elefantes.
Naquela despedida ganhei mais que um abraço e um até breve, recebi a história da Mulher-fênix renascida das suas cinzas da dor para alçar novos voos rumo a horizontes.


[Maria Emília Bottini publica no Rua Balsa das 10 aos Sábados]




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