Maria Emília Bottini
Trabalhei por muito tempo com vítimas de
violência sexual e doméstica. Cruzaram meu caminho muitas meninas e mulheres
sucumbidas, amassadas pela tragédia de serem violentadas em seu corpo, em sua
alma feminina.
Lembro com certa frequência de uma menina
de cinco anos que atendi no interior de Rio Grande do Sul, que no atendimento
relatava: “tia ele fez judiaria comigo”. A violência neste caso foi do tio de quinze
anos, que ao praticar a violência o fazia junto com seu irmão de seis anos.
Ambos ficaram em minhas memórias e nunca dela se afastaram.
Cruzei dia desses com uma bela mulher com
quem convivi por um breve tempo, diria até que este tempo foi atemporal. Sempre
que nos encontrávamos nossas conversas eram regadas a arte de fiar o tempo. Em
nosso último encontro afirmou que em minha atitude secreta de ajudá-la a havia
ajudado muito. Nunca sabemos o quanto ajudamos quando resolvermos ouvir alguém.
Não sabemos por que somos escolhidos para sermos depositários das memórias da
dor. Isso não se dá por acaso na minha concepção, algo me foi deixado naqueles
encontros.
Em um desses encontros contou-me da
violência sexual sofrida na infância por um membro de sua família, precisamente
por seu irmão. Filha de uma prole enorme, algumas barreiras foram rompidas e
algo dentro dela se quebrou ao sentir, em tenra idade, que família pode ser
algo muito perigoso.
A menina cresceu e fez escolhas por
caminhos nem sempre curtos e fáceis, mas sim longos e difíceis, acreditando no sono
eterno como solução para seu sofrimento emocional, mas dele foi acordada pelo
tratamento psicológico.
A sua narrativa só confirma as
estatísticas sobre as violências enfrentadas por crianças do Brasil em que seus
violentadores estão próximos, muitas vezes dentro da própria casa, o que
dificulta denúncias pelo medo e ameaças feitas pelos abusadores.
Relatou-me uma vivência em sua terapia
individual em que sua psicóloga lhe entrega um saco de argila para trabalhar a
violência sofrida. No início apenas observa a argila e por ela é observada. Não
sabia o que fazer com ela. Silenciosamente pensa, e aos poucos suas mãos magras
se juntam ao barro, a terra, ao movimento de mexer e se deixar levar para o
encontro do que a faz sofrer e deseja desprender-se de viver.
Mãos, barro e pensamentos guardados num
templo de dor, de raiva, de tristeza aos poucos são transformados e tomam formas.
Diante do movimento do amassar, fazer e desfazer diante de si surge um homem,
que o deixa de lado. Suas mãos seguem a mexer o barro conduzido pelo
inconsciente. O barro transforma-se em um automóvel grande mais se parece com um
trator. Em movimentos rápidos o trator passa várias vezes por cima do
homem-irmão. Matando-o, destruindo-o, voltando à condição de barro, de terra.
O homem é seu irmão, mas o trator é ela
dessa vez empoderada, com forças renovadas pela mulher que se tornou agora e consegue
enfrentar o homem-irmão. Ela é vencedora nesta luta, porque agora é dona de seu
corpo. Aos sete anos, a menina dentro dela, não conseguiu defender-se.
Ao finalizar a ação-destruição refere que
se sentiu bem, simbolicamente matando o violentador de sua meninice, desmancha de
alguma forma o que está dentro de si colocando diante dos olhos, amassando o
passado que ainda dói. Confesso que ouvindo a história senti certo encanto pelo
entendimento construído pela mulher adulta resgatando sua força, sua potência,
sua feminilidade. Demarcando um novo tempo em seu existir como mulher.
Após essa atividade sua psicóloga solicita
que junte os objetos e produza algo novo. As mãos a mexer e remexer o barro, já
não são mais trator e homem-irmão, tornam-se outra coisa, hora é uma casa que
se desfaz, hora borboleta com asas longas, mas em definitivo um jarro é talhado.
Um jarro grande e bonito. Jarros são geralmente usados para colocar água que
simboliza a origem da vida, a fecundidade, a fertilidade, a transformação, a
purificação, a força, a limpeza. Esse objeto tem um espaço vazio, representa o
novo criado para colocar novas experiências e novas formas de interpretar e resignificar
o vivido.
Meses se passam após aquela sessão e decide
escrever. Suas palavras brotam entre lágrimas. Leva para a sessão de terapia
sua escrita da dor; ao ler chora compulsivamente suas recordações de menina que
cresceu com medo de homens.
Sua psicóloga questiona o que deseja fazer
com o texto, afirma que deseja rasgar e assim o faz. A psicóloga apanha na
estante o jarro que recebe os pedaços rasgados e após depositar os papéis, pergunta
se poderia atear fogo. Silenciosamente vê a combustão acontecendo consumindo o papel,
a violência, a dor, em alguns minutos tudo isso é transformado em cinzas.
Simbolicamente o fogo queima mais que os papeis com escrita da violência
sofrida, queima a memória do vivido.
Lembrei-me da Fênix da mitologia grega,
pássaro que quando morria, entrava em autocombustão, passado algum tempo
renascia das próprias cinzas, podendo se transformar em uma ave de fogo. Outra
característica da Fênix é sua força que a faz transportar em voo cargas muito
pesadas, há lendas nas quais chega a carregar elefantes.
Naquela despedida ganhei mais que um
abraço e um até breve, recebi a história da Mulher-fênix renascida das suas
cinzas da dor para alçar novos voos rumo a horizontes.
[Maria Emília Bottini publica no
Rua Balsa das 10 aos Sábados]
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