Fonte: Emydio de Barros - óleo sobre papel 32 x 43 (1970).
Museu de Imagens do Inconsciente (Rio de Janeiro)[i].
Maria
Emília Bottini
O cinema é, para
mim, uma possibilidade de nos educarmos para a sensibilidade, além de nos fazer
refletir sobre temas difíceis, apresenta linguagem rica em simbologias e
permite tocar no mais profundo de nós mesmos. O filme chega, por vezes, aonde
os textos não chegam, nos capturam pelas imagens e nela estamos, nos
identificamos e nos projetamos.
Foi em uma
noite de abril que muito aprendi com o documentário Olhar de Nise (2015)
dirigido pelo jornalista e cineasta Jorge Oliveira que também é o roteirista dessa
bela obra cinematográfica. Um material sensivelmente produzido, certamente
muitos colaboraram para que o produto final agradasse tanto aos olhos quanto
aos sentidos, proporcionando luz sobre uma temática dolorosa e importante aos
humanos que é a doença mental.
O documentário registra, com maestria, alguns
depoimentos que compõem a trajetória de Nise da Silveira, uma das primeiras
mulheres brasileiras a se formar em medicina. Revolucionou a psiquiatria brasileira
usando tratamentos humanos para doenças mentais, ao invés dos procedimentos
violentos que eram o padrão para a época.
Afastada do
trabalho e presa por ser acusada de comunismo no Governo de Vargas, foi
reintegrada as suas atividades e encarregada de aplicar sessões de
eletroconvulsoterapia e insulínico em pacientes esquizofrênicos. Ela o fez, mas
se recusa a continuar a compactuar com tal atitude que para ela era violência e
não tratamento.
Nise é encaminhada
para a Sessão de Terapia Ocupacional, que funcionava no Centro Psiquiátrico
Pedro II, no Rio de Janeiro, e implanta o atelier de pintura, no qual o artista
plástico Almir Mavignier era o monitor. Juntos entregam aos doentes mentais
pincéis, tintas coloridas, papeis e telas e eles se encarregaram de criar
imagens de seus inconscientes feridos e maltratados pelas longas internações. Isso
foi maravilhoso, em um tempo que eletrochoque, lobotomia, banhos gelados,
medicação em excesso eram considerados terapias em hospitais psiquiátricos no Brasil
e no mundo.
Os desenhos
começam a despertar os artistas de si, adormecidos no tempo, e eles surgem
através de suas obras coloridas entre retas e curvas, para cima e para baixo,
nos movimentos as tintas desenham o mundo como o interpretam.
Nise adorava
gatos e muitos deles viviam em seu apartamento juntamente com o marido que a
protegia de forma amorosa dos aborrecimentos da vida cotidiana, como consequência
ficou à mercê de algumas dificuldades após a morte dele.
O documentário
apresenta a última entrevista da psiquiatra alagoana já no final da vida, entre
gatos e livros. Ela narra, em primeira pessoa, suas contribuições para a história
da saúde mental no Brasil. Por vezes desmerecida e esquecida no meio acadêmico
brasileiro como outras tantas figuras grandiosas de um país que desvaloriza
seus grandes autores e seus feitos.
Ela é, para
mim, uma das nossas grandes autoras, pequena de tamanho, mas grandiosa na ação,
de gênio difícil, porém revolucionária e inconformada. Apaixonada pelo que
fazia, após sua aposentadoria compulsória aos 70 anos, volta ao local de
trabalho e se candidata como estagiária para continuar frequentando o atelier. Só
a paixão explica tal fato.
Tenho para
comigo que apenas seres apaixonadas se importam com a realidade, por vezes
desumana, e nela operam mudanças, não sem pagar preços por isso, pois é preciso
ir contra a ordem estabelecida. Era uma estudiosa e pesquisadora da mente humana,
acompanhava pedaços de gente que as famílias abandonavam, a própria sorte, em
depósitos conhecidos como hospital psiquiátrico e lá deixavam de existir; não
eram mais reconhecidos como seres humanos, eram desprovidos de identidade.
Muitas dessas
pessoas não tinham nenhum problema mental, alguns eram desajustados sociais que
não correspondiam às regras impostas, outros viviam na rua. Enfim, toda a sorte
de marginalizados eram trancafiados nos hospitais psiquiátricos.
Ao adentrar a
porta essa se fechava, para jamais se abrir novamente em muitos casos, era a
morte em vida. Alguns permaneceram a vida inteira trancafiados em hospitais
psiquiátricos lucrativos. A saída de alguns se dava em um caixão quando lhe
destinavam algum, senão vala comum e sem referência.
A arte deu vez
e voz às pessoas que não eram reconhecidas como tais. As imagens de mandalas,
de casas, de flores, de animais, tomavam forma e traziam um pouco de colorido
ao mundo cinza em que viviam esses doentes mentais. O inconsciente
desorganizado pelos surtos psicóticos, pela arte desejava a organização, a
expressão, a existência perdida, a verdade interna.
Nise envia
cartas com fotografias de mandalas realizadas por esquizofrênicos para Jung (teórico
da psicologia), discípulo de Freud com quem divergiu. Ele se encanta com elas e
escreve-lhe uma carta. Os dois se conhecem pessoalmente em um seminário que
participa na Suíça e por lá permanece um período estudando, ele também a visita
no Rio de Janeiro.
As imagens iam
brotando através das mãos avidas dos pacientes, mas essas causaram polêmica. Para
artistas plásticos eram obras de arte, mas para Nise eram material do
inconsciente, uma forma para entender o progresso dos pacientes. Para a
alagoana nunca foram obras de arte, mas sim produções do inconsciente que
permitia acompanhar a evolução dos surtos psiquiátricos desses pacientes; os
desenhos melhoravam à medida que os pacientes começavam a se organizar internamente
revelando um autorretrato do que sentiam. Os desenhos permitiam entender do
inconsciente e a própria pessoa que nele se projetava.
Nise nunca
mudou sua forma de ver a questão, talvez fosse convicta do que pensava, pois
para ela esse trabalho era sua causa de vida. Eram apenas obras do inconsciente
ou também obras de arte? O que dizer da obra de Emydio de Barros que ilustra
esta crônica? Não seria desqualificar a arte ver apenas como material do
inconsciente?
Mas quem daria
ao doente mental status de artista? Quem pagaria pela arte produzida por um
doente mental? Quem lucraria com sua arte? Certamente, foram algumas perguntas
que Nise se fez.
Dessa forma,
com o acúmulo dos trabalhos produzidos e sempre catalogados, nasceu o Museu das
Imagens do Inconsciente no Rio de Janeiro, o guardião do passado das muitas
produções dos pacientes que por lá viveram e morreram e que nunca foram
promovidos a artistas, mas muitos ocupavam tal condição, sem sombra de dúvida.
Criou grupo de
estudo sobre as obras de Jung em sua casa, mas quem lá fosse estudar deveria
suportar os gatos, mesmo que deles não gostasse. A condição para ingressar no
grupo era o gato gostar da pessoa, ele era quem fazia a seleção de novos
membros. Nise também tinha suas loucuras e não eram poucas.
No
documentário, muitos quadros dos pacientes servem de pano de fundo aos
entrevistados que vão dando o tom colorido do trabalho que Nise realizou.
Alguns depoimentos são de pessoas que testemunharam a construção de uma
proposta de humanização do tratamento ao doente mental com a arte, quando não
se falava disso. São comoventes os depoimentos de pacientes que sobreviveram
aos maus tratos estabelecidos e que até hoje se emocionam ao falar. Numa
demonstração viva de resiliência, ou seja, os tratamentos desumanos os vergaram,
mas não os quebraram, resistiram bravamente a toda uma engenharia pré-estabelecida
da loucura.
A arte
mostrou-se uma janela para a alma, claro que isso não se deu sem dores e uma
dose absurda de altruísmo ao doente mental, sem elas nada de muito interessante
é criado. Esse documentário torna Nise da Silveira memória viva e um símbolo de
sua luta para diferenciar tratamento de violência em saúde mental.
Nise da
Silveira fez a diferença, ousou criar porque era uma artista de si mesma.
[Maria Emília Bottini publica no
Rua Balsa das 10 aos Sábados]
O olhar de nise entra nos nossos recantos de emoção... quase todas
ResponderExcluir