18 junho 2019

NANQUIM

Maria Amélia Mano

Eu precisava te dizer
Tenho quase trinta anos
e uma vida marítima que não vês,
que não se pode contar.
Ana Martins Marques

Precisava te dizer.

Com quase dez anos aprendi a andar no escuro. Esbarrei em quinas, superei vultos, sustos, sombras, monstros, fantasmas, arames farpados, cacos de vidro e quebrei mindinhos. Deixei no roxo das canelas e no rasgo dos joelhos o medo da noite, da floresta e do mar. Me apaixonei por fuga e fogo. Dormia em quintais.

Tinha quase vinte quando fiz as malas. Coloquei remédio pra dor que ainda não tinha, linha de bordar sonho pra admirar e querer. Guardei no armário o medo da saudade e do fim do amor. Me apaixonei por paixão, pressa, prece, febre, flechas, tochas intensas em beira de abismos. Dormia nas pontas dos pés pra não me acordar.

Com pouco mais de trinta senti calafrios. Foi surpresa todas as dores, insônias, náuseas, naus partindo de mim, me partindo, me desinteirando em muitas metades, meios e mundos. Perdi medo de ressacas, azias e quedas. Me apaixonei por ruas, esquinas, viagens, trilhos, travessias. Dormia nas boleias e portais, a espera de raios e recaídas.

Aos quarenta, fiz pacto com o diabo. Construí puxadinho pra dores antigas morarem perto. De boa. Me conformei em não aprender sânscrito ou esperanto. Perdi medo do crédito, do débito, do sustento e da solidão. Me apaixonei pela minha imprudência de sair dos comboios e manadas. Pelas palavras. Dormia entre canções, desenhos e poesias.

Quase cinquenta.

Agora, escuto nossos passos na areia miúda, única e úmida do mar de maio. Perco medo do tempo que tempera nossos cabelos e orlas. Me apaixono por esse silêncio, essa sede, sumo, sabor levemente picante e suavemente adocicado dos teus olhos de nanquim. Durmo na linha da palma da tua mão onde acordo sempre. Entrelaçada.

Crônica para a oficina Santa Sede Circuito


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