04 junho 2019

ROMÃ


Maria Amélia Mano



Isabel que gostava de contas e coral, que observava estrelas, que chamava pássaros, que dançava descalça, que chorava em silêncio, que caminhava sem luneta e bússola, sem rumo, em ronda, em rima que fazia. Que dava pra todo mundo. Que vivia entre céu e mar, olhar azul. Que tinha cores de areias e dores na roda da saia, do porto que era ponto. Ofício e sustento.

Isabel de saia rodada, saia-vela que voava como se vento viajante soprasse no oceano. Bailava aquática, aérea, etérea, eterna em lenta coreografia, leve dança, movimento de nuvem e nado, passo de quem vai passar, de quem vai passear, pousar. Que era inteira, intensa, suspensa, salgada, lágrima em correntes quentes, corda bamba entre mastro e profundeza abissal. Esquina e cais.

Isabel ia, saía de saia em dança de medusa sem medo. Sentia, sofria, sabia flutuar, boiar, bailar com graça de gaivota que sobrevoa convés e beira d’água. Fazia redemoinho, mas não se molhava. Amava como se beijar fosse e não beijava, como se mergulhar fosse e não mergulhava. Sem lema, leme, remo, seguia, sereia, ameaçava, enganava, sugeria, seduzia, provocava. Dava preço.

Isabel evocava cardumes e deuses perdidos em navios naufragados com simples toque e sopro. Mirar. Carícia, carinho marinho, espuma de onda na praia. Barra da saia, barrado, babado, bordado, renda, fenda expondo pele, púbis, sinais, seios, búzios, beijos e algas. Algo das brisas e tempestades. Marcas, cartas, mapas de mergulhos, marulhos, maresias, navegares, âncoras, tatuagens. Cicatrizes da noite.

Isabel que se vendia, se esqueceu de si, da saia, se cortou em proa e pulso. Se esvai sangrando, esguichando, espalhando resto, ruge, riso, purpurina, sonho e coração. Fecha os olhos azuis como flor de fim de tarde. Luz de farol apagando, sol indo cor de romã. Fruta que colhia menina pra ter sorte na vida e no amor, em tempo de barco de papel, brincadeira, inocência e alegria. Um dia.

Texto para a Oficina Santa Sede Circuito

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